Aluna: Eliana Dias Perpétuo

Resumo

Neste artigo, trazemos à discussão uma proposta de abordagem ao uso de drogas (legais e ilegais) no local de trabalho. O relato da intervenção e das respectivas considerações partiu de uma assessoria prestada a uma empresa pública, de grande porte, que demandava um projeto terapêutico e preventivo para tratar do problema. Como resposta, foi desenvolvida uma política institucional específica, alicerçada no seguinte tripé: a implantação de uma rotina norteadora para a abordagem dos funcionários quanto ao uso de drogas no trabalho; o credenciamento de locais para tratamento e a criação de comitês, liderados por funcionários, que passaram a ser responsáveis pela condução do programa após o término do trabalho da assessoria. Ressaltamos a importância da participação do maior número possível de funcionários, principalmente daqueles com poder decisório para a sustentação e implementação de um Programa, bem como a necessidade de criar uma política que intervenha no instituído e que considere os âmbitos administrativos, operacional e de saúde. Assim, marca-se uma diferença em relação à forma como, até a poucos anos, vinha sendo tratado o problema, oscilando entre o descaso e a punição.
Algum tempo se passou desde que as empresas subestimavam os efeitos das ocorrências ligadas ao uso de drogas no local de trabalho, negando-os ou minimizando-os. Atualmente, observa-se que as empresas públicas e privadas têm se preocupado com o aumento da incidência dessas situações.
A maior investigação feita em torno do uso de álcool e de drogas no local de trabalho foi a pesquisa realizada pelo SESI (Fridman e Pellegrini, 1995) em 23 empresas gaúchas, públicas e privadas, envolvendo 51600 funcionários. Essa pesquisa concluiu que a prevenção é fundamental, tendo em vista que 35% do total dos funcionários apresentavam problemas decorrentes do uso de álcool, segundo o teste CAGE e, ainda, que 54,7% dos trabalhadores das empresas tinham menos de 34 anos, o que justifica o investimento na prevenção de novos casos de dependência. De acordo com os autores, os índices de recuperação mostraram-se animadores, girando em torno de 80%.
O número de empresas que desenvolvem qualquer atividade relacionada à prevenção e ao tratamento ao uso abusivo de drogas ainda é pequeno, e a maioria delas conta com atividades isoladas, por iniciativa e interesse de poucos técnicos. Essas iniciativas começaram a surgir nas empresas em meados da década de 80. Entretanto, concebemos que esses são entraves que precisam ser ultrapassados para que não se trabalhe como bombeiros em ação, apagando incêndios. Assim, pensamos que programas de prevenção, para serem consistentes e se manterem, dependem de uma oficialização (recursos destinados, envolvimento das chefias imediatas e da direção), da estruturação organizada das ações e da efetiva formação coletiva para trabalhar em conjunto, estabelecendo sua formalização na empresa (introjeção de ideias através da sistematização das ações de prevenção na vida cotidiana da empresa). Além disso, consideramos fundamental intervir na cultura institucional a fim de promover mudanças significativas, levando em conta os aspectos que predispõem ao uso/abuso de drogas, advindos das relações de trabalho e também como uma opção pessoal.
A realidade da empresa na qual se desenvolveu a assessoria caracterizava-se por um elevado número de acidentes de trabalho, sobrecarga dos serviços médicos, faltas, atrasos, excessivas solicitações de licenças-saúde, perda de técnicos habilitados, inúmeros conflitos interpessoais e, por fim, um clima de sobressaltos, causado pelas situações de urgência, envolvendo o uso de drogas, que mobilizavam todo o setor de trabalho e paralisavam parcialmente as atividades da empresa. Todos esses indicadores guardavam uma relação direta com o consumo de drogas e com a diminuição da qualidade de vida do trabalhador, confirmando as postulações de Campana (1997).

Esclarecendo Pressupostos que Justificam Nossa Proposta de Trabalho

A intervenção da assessoria é pautada pelos fatores inter-relacionados na determinação do uso/abuso de drogas, quais sejam: o funcionário, com sua história singular e dinâmica familiar; o contexto cultural da organização, inserindo-se aí a história da instituição, associada à disponibilidade do produto, isto é, a presença da droga no local de trabalho.
Pela influência desses três fatores, observa-se que as organizações, ao longo de sua história, estruturam-se a partir de padrões de relacionamento nos quais o uso de drogas vai arraigando-se e cristalizando-se de tal forma que pode adquirir a significação de congregar, proteger, liberar e fortalecer.
Cabe ressaltar que a referência à psicanálise orientou a escuta no desenvolvimento das técnicas de intervenção escolhidas. A concepção de sintoma social permeou nossa intervenção, desde a compreensão dos aspectos institucionais e sociais que contribuem para a determinação do uso de drogas no trabalho até a forma de abordagem, buscando uma implicação subjetiva dos funcionários em geral. Assim, também do ponto de vista terapêutico, é de interesse a construção de alternativas singulares para o enfrentamento da situação e não apenas uma adaptação comportamental visando somente à produtividade.

Escolhendo Estratégias

Buscou-se, nos grupos de trabalho, uma escuta que permitisse intervir adequadamente, viabilizando a comunicação entre os participantes e produzindo, a partir de dúvidas e sugestões, uma construção coletiva, orientada por conhecimentos técnicos.
De maneira geral, foram utilizadas as seguintes técnicas:
• grupos terapêuticos;
• entrevistas preliminares;
• oficinas;
• grupos operativos;
• planejamento estratégico;
• dinâmica de grupo.

Propondo Eixos Estruturantes em Torno dos Quais uma Política de Prevenção Pode se Articular

Considerando que a implantação de uma política institucional para a abordagem do uso e abuso de drogas precisa estar articulada à história e ao contexto da organização, envolvendo um número significativo de funcionários para lhe dar sustentação e continuidade, a política desdobrou-se em três eixos fundamentais:
• A criação e a implantação da rotina para a abordagem dos funcionários usuários de drogas. Essa sistemática teve caráter preventivo. Nasceu da necessidade de unificar os procedimentos em relação ao uso de drogas no local de trabalho. Constituída por cinco estágios, previa diferentes situações do uso de drogas, incluindo reincidências, para as quais eram propostas formas de intervenção e medidas administrativas, reforçando, sempre, o encaminhamento para tratamento;
• A criação de uma estrutura de comitês, na qual se incluiu um comitê coordenador e um comitê em cada setor de trabalho com a responsabilidade de dar continuidade ao programa. Essa estrutura foi proposta a fim de atender à necessidade de proceder uma modificação da cultura da organização quanto ao uso de drogas no ambiente de trabalho e quanto à unificação de procedimentos, intensificando estratégias preventivas;
• O credenciamento de clínicas para tratamentos ambulatoriais e internações. Esse processo iniciou-se antes da contratação da assessoria e efetivou-se durante o período de desenvolvimento do trabalho, facilitando o acesso dos funcionários ao tratamento.

Criação de Estratégias Preventivas –
As estratégias preventivas desenvolvidas incluíram:

• A elaboração de materiais informativos sobre o programa e sobre o uso de drogas (duas campanhas mais amplas foram planejadas e realizadas através de material informativo – cartazes distribuídos em todos os setores e no contracheque).
• A criação de medidas de valorização tanto do trabalho quanto do trabalhador, através da realização de reuniões nos setores de trabalho que permitissem a comunicação entre funcionários e chefias, através de reuniões coordenadas pelos funcionários que participavam diretamente do Programa.
• A criação de espaços de lazer e cultura, destacando-se a mostra de filmes escolhidos pelos funcionários na maior parte dos setores da empresa; e o levantamento de recursos para atividades recreativas nos horários de intervalo.

O Processo

Durante o transcorrer do programa, ocorreu uma oscilação entre momentos de resistência e de valorização em relação ao que era empreendido. A assessoria interveio na coordenação do trabalho e na mediação dos conflitos, potencializando o engajamento dos participantes nas ações planejadas. Verificou-se também, como efeito da intervenção proposta, o envolvimento da direção no Programa e um maior engajamento da equipe médica.
Após o término da primeira fase de assessoria, evidenciou-se a responsabilização dos funcionários que compunham os diversos espaços do Programa. Esse resultado ficou evidenciado pela continuidade dos grupos de ação e pela estruturação do comitê coordenador, responsável pelo gerenciamento do programa, quando da saída da assessoria dessa função. Além disso, concomitante à saída da assessoria, outro aspecto favorável ao engajamento pôde ser observado com a criação dos comitês de setor (no mínimo um em cada local de trabalho), encarregados da aplicação da rotina, da discussão de casos emergentes, da elaboração e da execução de ações preventivas.
Apesar da resistência, comum a qualquer processo de implementação de novos programas, conseguiu-se dar andamento às ações previstas e avançar nos objetivos traçados inicialmente para o trabalho.
Desse modo, o Programa realizou seu intento, fazendo circular um entendimento que superou uma perspectiva estritamente moral e contribuindo na qualificação das relações de trabalho, objetivada numa política produzida coletivamente e adotada pela organização.

Conclusão

No trabalho desenvolvido, propomos uma dupla vertente para a leitura do problema do uso de drogas no local de trabalho: de um lado, como algo particular, na medida em que cada sujeito tem uma história pessoal que o predispõe a escolhas singulares, e, de outro, identificando o que, na organização, favorece e incrementa o uso de drogas, considerando o contexto social como um dos elementos determinantes na constituição do problema.
Assim, quando o uso de drogas aparece no local de trabalho (que geralmente é o reduto mais preservado entre os que vivem essa situação) deve-se estar atento e escutar o que ele denuncia. Ainda que não seja possível reduzir as causas de seu aparecimento unicamente às questões internas de uma organização, torna-se imprescindível que se analise suas origens e as formas mais adequadas de intervenção.
Levando em conta as considerações feitas até aqui, é importante identificar o que favorece esse sintoma. Na empresa em questão observou-se que, durante muito tempo, o uso de drogas no local de trabalho foi aceito, cumprindo uma função a partir da qual se funda o que convencionamos chamar de uma cultura do uso/abuso de drogas no trabalho.
A proposição do termo cultura do uso/abuso de drogas no trabalho refere-se a um padrão de comportamento historicamente constituído em que o uso ou o abuso é aceito, arraigando-se e cristalizando-se de tal forma, que pode adquirir a significação de congregar, liberar e fortalecer, e também como forma de se proteger frente às dificuldades encontradas no trabalho ou nas relações interpessoais. Os argumentos que nos permitiram a leitura a partir desse conceito, na instituição aqui mencionada, são ilustrados com os seguintes recortes, retirados das falas dos funcionários sobre o assunto: a dureza do trabalho (riscos, dificuldades na execução e condições de trabalho, baixa valorização da atividade desenvolvida e da função que desempenha); e o que poderíamos qualificar como companheirismo (confraternizar, sentir-se aceito pelo grupo, não entregar o colega por estar fazendo algo proibido).
Para haver modificações na cultura estabelecida (deixar de conceber o uso de drogas como algo natural no ambiente de trabalho), as intervenções devem ser dirigidas à organização como um todo, o que pode ocorrer através de um programa sistemático decorrente de uma política institucional, integrando intervenções de saúde e medidas administrativas, reconhecidas formalmente pela organização.
Partimos do pressuposto de que o impacto de um programa de saúde depende, fundamentalmente, da sistematicidade de suas ações e do engajamento de um considerável número de funcionários de diferentes níveis hierárquicos, representantes de distintos segmentos da empresa onde estão inseridos. Dessa forma, a política criada na organização em estudo, baseada no tripé formado pelos eixos Rotina – Comitês – Credenciamentos, resultou na estruturação de um Programa incorporado à rotina da empresa, formalizado através de dispositivo oficial, assegurando a continuidade do mesmo por intermédio dos comitês e dos grupos de ação. Nessa perspectiva, a formulação de uma rotina de abordagem do funcionário, a partir das características da empresa, foi necessária para orientar tanto chefias quanto funcionários em relação às possibilidades de intervenção, ou seja, o que fazer em cada etapa da manifestação do problema, favorecendo uma referência mínima e uma direção quanto ao encaminhamento das situações.
Para sustentar a implementação e a permanência do Programa, escolheu-se uma metodologia baseada numa construção conjunta que visava ao comprometimento de cada um dos funcionários, permitindo a apropriação do Programa pelos que o integraram, responsabilizando-os e possibilitando que se encarregassem de sua continuidade. Trabalhar o uso de drogas em uma organização através dessa via busca propiciar alguma autonomia, em que o “saber fazer não fica restrito ao conhecimento médico, psicológico e social.
Sublinhamos, então, a importância da capacitação dos funcionários em seu papel de multiplicadores do processo. Em consequência, passam a ter condições de se encarregar da busca de soluções, de servir de referência a outras pessoas dentro da organização, assim como de terem autonomia decisória frente a situações, estabelecendo novas alternativas de intervenção. Sem dúvida, a eficácia do trabalho depende do fluxo interno da organização, compreendendo: o funcionário ou o grupo que apresenta o problema; a pessoa que percebe a situação; aquele que intervém e como o faz; o encaminhamento dado ao problema e o acompanhamento do funcionário na trajetória de recuperação até sua reinserção no trabalho.
Sabemos que, atualmente, o diálogo com vários setores da sociedade sobre o uso/abuso de drogas vem aumentando, a partir do debate quanto às diferentes interpretações que se faz do problema, o que permite o avanço na discussão.
Podemos sensibilizar e capacitar um grande número de funcionários, mas veremos esse trabalho dificultado, ou até impossibilitado, se não houver disponibilidade para viabilizá-lo por parte de quem tem poder decisório. Em se tratando de empresas com rotatividade nos cargos de direção, corre-se o risco de, ao assumirem as novas chefias, o que se desenvolvia não seja mais tomado como prioridade, ou mesmo que os novos chefes queiram fazer de outra forma, desconsiderando a trajetória e as sementes lançadas anteriormente. É inegável que esse limite pode se apresentar. Talvez, então, seja preciso reinventar a roda, explicitar impasses, avaliar o processo com os envolvidos e intervir na direção de ultrapassar o narcisismo das pequenas diferenças.
Além do aspecto institucional, consideramos que qualquer programa relacionado a essa questão, seja preventivo e/ou terapêutico, necessita levar em conta também que o uso de drogas é uma prática cultural e que não podemos formular uma intervenção nos moldes de uma campanha no sentido de tornar as pessoas livres das drogas. Nesse sentido, a contribuição da psicanálise sobre a toxicomania e as formulações sobre sintoma social são cruciais, pois ao mesmo tempo em que nos levam a entender que nem todos estabelecem a mesma relação com a droga, permitem-nos fazer uma escuta dos determinantes socais e institucionais, compreendendo também que os ideais de consumo são transformados em imperativos a expensas dos prejuízos subjetivos, orgânicos, profissionais e sociais.
Encontramos confirmada nesta experiência específica nossa interpretação de que o uso de drogas se presta a confusões que podem configurar dois extremos a serem trabalhados: a ideia de que o uso de drogas é uma liberdade individual e, portanto, não permitiria qualquer intervenção. O outro extremo estaria representado pelo imperativo de livrar as pessoas do mal de qualquer forma. A superação desta confusão de posições extremadas está na possibilidade de exercer uma mediação.
Ressaltamos a necessidade de manter distância do cunho moral, onde se diz o que é melhor para todos. Do mesmo modo, é necessário o direcionamento a uma profunda reflexão sobre quais as escolhas do indivíduo e que consequências terão em sua vida. É certo que uma posição que se ancore nesse princípio tem suas dificuldades, pois trata-se de flexibilizar posições e de reafirmar que, no trabalho, o uso de drogas não é possível. Há necessidade de que os limites sejam recolocados e de que o indivíduo possa escolher o que fazer.
Esses programas, com ênfase na promoção da saúde, devem estar voltados para a totalidade dos funcionários com vistas a que cada um possa refletir sobre seus hábitos de vida, entre eles sua relação com o uso de drogas. Acreditamos que embora não seja possível evitar que uma pessoa use drogas, se assim está decidida, podemos fazê-la pensar por que o faz, a que isso responde, lançando maior flexibilidade quanto a suas escolhas.
Enfatizamos, também, que um programa de prevenção ao uso de drogas no ambiente de trabalho deve, com o tempo, estar inserido em uma política mais ampla de saúde, tendo como alvo a qualidade de vida do trabalhador e da organização, bem como estar referenciado a uma política de saúde pública ou governamental. Afinal, podemos fazer mais do que apagar incêndios.

Autores:

Clarice Sampaio Roberto
Grupo Vindicas: Grupo de Trabalho e Estudos das Manifestações Sociais Contemporâneas

Marta Conte
Grupo Vindicas: Grupo de Trabalho e Estudos das Manifestações Sociais Contemporâneas

Rose Teresinha da Rocha Mayer
Grupo de Trabalho e Estudos das Manifestações Sociais Contemporâneas

Sandra Djambolakdjian Torossian
Grupo de Trabalho e Estudos das Manifestações Sociais Contemporâneas

Tatiane Reis Vianna
Grupo de Trabalho e Estudos das Manifestações Sociais Contemporâneas

Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932002000100004

Publicaçaõ: Psicol. cienc. prof. vol.22 no.1 Brasília Mar. 2002

Referências bibliográficas

Campana, A. A. M. (1997). Álcool e Empresas. In: Ramos, Sérgio de Paula & Bertole, José Manoel org. Alcoolismo Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas.

Fridman, Ida S., Pellegrini, Inês L (1995). Trabalho & Drogas – Uso de substâncias psicoativas no trabalho. Porto Alegre: UNDCP/SESI/FIERGS/EDIPUCRS.

Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinqüência e toxicomania – uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta.

Drogas e Trabalho: Uma Proposta de Intervenção nas Organizações