Aluna: Vera Lúcia

 

Introdução

A Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou no início de 2014 o Relatório Global sobre Álcool e Saúde, que traz informações sobre o consumo de álcool no mundo e avalia os avanços realizados nas políticas do álcool. Este documento destaca a importância de conceder atenção especial na redução dos prejuízos do álcool a terceiros, ou seja, aos que indiretamente sofrem os prejuízos do álcool, dentre os quais o acometimento fetal e de neonatos pelo uso de álcool por gestantes.

O conhecimento acerca dos efeitos do álcool na gestação é considerado recente; acredita-se que os primeiros relatos surgiram em 1968 na França, onde pesquisadores descreveram graves efeitos adversos do álcool em 127 casos de filhos de mães alcoolistas. Após cinco anos, a terminologia “Síndrome Alcoólica Fetal” (SAF) foi proposta por Jones e Smith nos Estados Unidos, quando apresentaram um padrão de malformações em fetos de mães alcoolistas e critérios diagnósticos.

 

O que é a Síndrome Alcoólica Fetal (SAF)?

A SAF é o transtorno mais grave do espectro de desordens fetais alcoólicas (fetal alcohol spectrum disorders – FASD) e constitui um complexo quadro clínico de manifestações diversas que podem ocorrer em quem cuja mãe consumiu bebida alcoólica durante a gestação. Os efeitos decorrem da interferência na formação cerebral, em especial na proliferação normal e migração dos neurônios que não se desenvolvem completamente em certas estruturas e podem acarretar alterações congênitas, anomalias do sistema nervoso central, retardo no crescimento e prejuízos no desenvolvimento cognitivo e comportamental.

De fato, o consumo de álcool por gestantes pode provocar desde disfunções mais sutis até o quadro completo da SAF, passando por parto prematuro, aborto, morte fetal e uma série de deficiências físicas, comportamentais, cognitivas, sociais e motoras, além de outras dificuldades ao longo da vida. Entretanto, por motivos ainda desconhecidos pela ciência, nem todas as crianças nascidas de mães que consumiram álcool no período gestacional desenvolvem os seus efeitos deletérios.

 

Prevalência de casos de SAF no Brasil e no mundo

Mundialmente, acredita-se que a prevalência média encontre-se entre 0,5 a 2 casos para 1.000 nascidos vivos, superando índices de outros distúrbios do desenvolvimento como síndrome de Down e espinha bífida. Ainda, de acordo com a OMS, 0,1% das mortes atribuídas ao álcool em 2012 dizem respeito a condições neonatais, incluindo a SAF.

Nos Estados Unidos, estima-se que a cada ano 40 mil bebês nascem com SAF, tornando este distúrbio mais comum que novos diagnósticos de transtorno do espectro autista e uma das principais causas evitáveis de deficiência intelectual. Recentes estudos sugerem que casos de SAF podem chegar a aproximadamente 50 por 1.000 entre os nascimentos no país.

No Brasil, anualmente 1.500 a 3.000 casos novos podem surgir se a prevalência de 0,5 a 2 por 1.000 nascidos vivos for considerada.

 

Mecanismo de ação do álcool sobre o feto

Após o consumo, o álcool entra na circulação em direção ao fígado, onde passa por um processo de oxidação e transforma-se em acetaldeído, substância com alta capacidade de difusão em tecidos e líquidos corporais.

Assim, no corpo da gestante, o álcool atravessa a placenta através do sangue materno, chegando ao líquido amniótico e feto. Após uma hora os níveis de etanol no líquido amniótico e no sangue fetal são equivalentes aos da gestante. Entretanto, o organismo do feto não encontra-se apto para metabolizar o álcool e assim, a concentração de álcool no seu sangue permanece elevada por mais tempo, sendo que a redução do nível alcoólico ocorre principalmente pelo retorno à circulação materna.

Transmissão de álcool para o feto

 

Vale ressaltar que todos os tipos de bebidas alcoólicas são igualmente prejudiciais (incluindo vinhos, cervejas e bebidas mistas) mesmo que consumidas em pequenas quantidades e em qualquer momento do período gestacional.

 

Prevenção

A SAF é 100% atribuída ao álcool e 100% evitável. Por isso, a única forma de evitá-la é evitar totalmente a ingestão de bebidas alcoólicas durante a gestação, ao tentar engravidar ou após relações sexuais desprotegidas – quando é possível engravidar (pois em muitos casos só tomam conhecimento de gravidez algumas semanas após a fecundação). Além disso, mulheres que estejam grávidas e por algum motivo consumiram álcool devem cessar o uso o quanto antes a fim de minimizar os riscos.

 

Efeitos do uso de álcool na gestação

Os prejuízos causados pela exposição pré-natal ao álcool estão relacionados a diversas partes do corpo e por diferentes processos em vários locais que ainda estão em desenvolvimento no feto, como por exemplo:

Morte de uma série de tipos celulares, o que pode causar desenvolvimento anormal de diferentes partes do corpo do feto;O álcool pode interromper o desenvolvimento normal de células responsáveis por diferentes funções do cérebro;Devido à constrição dos vasos sanguíneos interfere no fluxo sanguíneo da placenta, dificultando o fornecimento de nutrientes e oxigênio para o feto e prejudicando seu desenvolvimento natural;Subprodutos tóxicos do metabolismo do álcool podem permanecer concentrados no cérebro e contribuir para o desenvolvimento da SAF.

Por esses exemplos, podemos perceber como a exposição pré-natal ao álcool pode causar danos cerebrais permanentes, uma vez que o cérebro está em pleno desenvolvimento durante a gravidez. Exames de ressonância magnética revelam que alguns indivíduos expostos ao álcool no período intrauterino apresentam o tamanho do cérebro reduzido; há também a possibilidade de que algumas partes do cérebro sejam danificadas ou ausentes (gânglios basais, cerebelo, corpo caloso, e outros).

O sistema nervoso central (SNC) pode ser atingido pela ação direta ou indireta do álcool sobre o processo de maturação embrionária do feto.

Quadro clínico

As mães devem comunicar seu médico quando ocorrer uso de álcool durante a gestação para favorecer a identificação da síndrome. Mesmo que tardiamente, a definição do quadro é útil para orientação de familiares e cuidadores.

Para a identificação da SAF é necessário a presença de três categorias primárias: 1) alterações faciais; 2) restrição de crescimento pré e/ou pós-natal e; 3) evidências de alterações estruturais e/ou funcionais do SNC associadas à exposição intrauterina ao álcool (como indicado no Quadro 1). Assim, o diagnóstico da SAF só pode ser admitido se houver confirmação do uso de bebida alcoólica na gravidez e presença de características das três categorias primárias citadas.

 

 

Tratamento

Não existe cura para a SAF, apenas intervenções propostas para crianças e para a família capazes de minimizar os danos causados.

O diagnóstico precoce da doença é considerado fator protetor já que melhores resultados são obtidos por pacientes que tiveram diagnóstico feito ainda na primeira infância.

O tratamento é de suporte, baseado em intervenções que envolvam diferentes aspectos afetados pela síndrome, de forma associada e concomitantemente com participação de equipe multiprofissional que resulte em plano terapêutico específico para cada indivíduo. Entre elas destacam-se: intervenções educacionais com o intuito de contornar as dificuldades no aprendizado; intervenções parentais visando promover a interação entre os pais e a criança através de apoio psicológico e orientação; intervenções farmacológicas, uma vez que crianças e adolescentes expostas ao álcool precocemente são mais propensas a apresentar alterações de humor, problemas de comportamento, drogadição, entre outros.

 

Amamentação

Diferente do que muitos acreditam, parte do álcool (cerca de 2%) consumido pela mulher que está amamentando é transferida para seu leite e, portanto, é consumido pelo bebê. Isto pode prejudicar o desenvolvimento neuromotor, sono e aprendizagem da criança.

Sobre isto, é importante esclarecer uma ideia equivocada muito difundida culturalmente: a de que o álcool facilitaria a produção do leite e teria propriedades para acalmar o bebê. Pesquisas demonstram, entretanto, que o consumo de álcool pode acarretar em redução de produção de leite materno além de interferir no padrão de sono da criança.

 

Conclusão

Apesar dos avanços no conhecimento sobre os efeitos danosos do consumo de álcool durante a gestação, a investigação sobre os efeitos complexos do álcool sobre o feto ainda encontra-se em curso. Novas pesquisas e análises clínicas são necessárias para ampliar o entendimento e promover melhorias quanto a prevenção, diagnóstico e tratamento de SAF.

Por afetar gravemente diversos aspectos físicos, comportamentais, cognitivos e sociais da criança com reflexos no contexto familiar e resultando em prejuízos significativos na saúde e nos âmbitos social e econômico, políticas públicas devem ser direcionadas para a prevenção do uso de álcool por gestantes e lactantes, considerando que é um problema 100% evitável.

Sendo assim, conclui-se que o uso de álcool durante a gestação e amamentação constitui uma forma de consumo inaceitável.

Referência(s):

Centers for Disease Control and Prevention – Alcohol Use in Pregnancy

Diferenças entre os gêneros – CISA

Effects of alcohol on a fetus – SAMHSA

Fetal Alcohol Spectrum Disorders: Center for Excellence – SAMHSA

Fuentes D, Andrade SPC, Malloy-Diniz LF, Camargo CHP. Desenvolvimento cognitivo e psicomotor. In: Miguel EC, Gentil V, Gattaz WF. Clínica psiquiátrica. Barueri: Manole, 2011. p. 182-191.

Grupo de Trabalho “Álcool na Gravidez” – Sociedade de Pediatria de São Paulo

Alcohol’s Effect on Lactation – National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism

Segre CAM. Efeitos do álcool na gestante, no feto e no recém-nascido. São Paulo: Sociedade de Pediatria de São Paulo, 2010.

Disponível em:
http://www.cisa.org.br/artigo/4763/sindrome-alcoolica-fetal.php

Síndrome Alcoólica Fetal