Aluno: Fábio Lacet

Critérios Diagnósticos

RESUMO

A Síndrome de Dependência do Álcool (SDA) é um grave problema de saúde pública. Embora seja bem estudada e seu quadro clínico seja bem estabelecido, muitas vezes a SDA passa despercebida mesmo em avaliações psiquiátricas. Este trabalho apresenta um breve relato das relações que a sociedade e o homem mantêm com as bebidas alcoólicas, enfatizando o desenvolvimento do conceito de alcoolismo na medicina, até atingir a definição de SDA, tal como é descrita hoje pela CID-10 e DSM-IV. Procura mostrar como existem diversas formas de uso do álcool, que implicam em distintos níveis de risco e de gravidade no seu consumo e que evoluem como um continuum. Tais diferenças são frisadas no cotejamento entre os conceitos de uso nocivo e de dependência do álcool, que se revestem de muita importância na clínica, tanto na prevenção quanto no tratamento desse transtorno, que devem ser do conhecimento de todo psiquiatra.

Conceito da SDA

A SDA não é uma enfermidade estática que se define em termos absolutos, mas um transtorno que se constitui ao longo da vida. É um fenômeno que depende da interação de fatores biológicos e culturais – por exemplo, religião e valor simbólico do álcool em cada comunidade –, que determinam como o indivíduo vai se relacionando com a substância, em um processo de aprendizado individual e social do modo de se consumir bebidas. Nesse processo de aprendizado da maneira de usar o álcool, um dos fenômenos mais significativos é o surgimento dos sintomas de abstinência. Quando a pessoa passa a ingerir a bebida para aliviar esses sintomas é estabelecida uma forte associação que sustenta tanto o desenvolvimento quanto a manutenção da dependência.

Identificação dos componentes da SDA

Segundo Edwards6, a dependência seria “um relacionamento alterado entre a pessoa e sua forma de beber”, onde, às razões pelas quais o indivíduo começou a beber, adicionam-se àquelas relacionadas à dependência. Assim sendo, a dependência torna-se um comportamento que se retroalimenta e que abrange muito mais que tolerância e abstinência.

Os elementos da Síndrome de Dependência Alcoólica são:

1) Estreitamento do repertório

No início, o usuário bebe com flexibilidade de horários, de quantidade e até de tipo de bebida. Com o tempo, passa a beber com mais freqüência, até consumir todos os dias, em quantidades crescentes, ampliando a freqüência e deixando de importar-se com a inadequação das situações.

Nos estágios avançados, o indivíduo consome de modo compulsivo e incontrolável para aliviar os sintomas da abstinência, sem importar-se com os danos orgânicos, sociais ou psicológicos. Sua relação com a bebida torna-se rígida e inflexível, no padrão de tudo ou nada.

2) Saliência do comportamento de busca do álcool

Com o estreitamento do repertório do beber, há uma tentativa do indivíduo de priorizar o ato de beber, mesmo em situações inaceitáveis (por exemplo, dirigindo veículos, no trabalho). Em outras palavras, o beber passa a ser o fulcro da vida do usuário, acima de qualquer outro valor, saúde, família e trabalho.

3) Aumento da tolerância ao álcool

Com a evolução da síndrome, há necessidade de doses crescentes de álcool para obter o mesmo efeito conseguido com doses menores, ou a capacidade de realizar atividades apesar de altas concentrações sangüíneas de álcool.

4) Sintomas repetidos de abstinência

Quando há diminuição ou interrupção do consumo de álcool, surgem sinais e sintomas de intensidade variável. No início, eles são leves, intermitentes e pouco incapacitantes mas, nas fases mais severas da dependência, podem manifestar-se os sintomas mais significativos, como tremor intenso e alucinações.

Os estudos descritivos identificaram três grupos de sintomas:

-físicos: tremores (desde finos de extremidades até generalizados), náuseas, vômitos, sudorese, cefaléia, cãibras, tontura.

-afetivos: irritabilidade, ansiedade, fraqueza, inquietação, depressão.

-sensopercepção: pesadelos, ilusões, alucinações (visuais, auditivas ou tácteis).

5) Alívio ou evitação dos sintomas de abstinência pelo aumento da ingestão da bebida

Este é um sintoma importante da SDA, sendo difícil de ser identificado nas fases iniciais. Torna-se mais evidente na progressão do quadro, com o paciente admitindo que bebe pela manhã para sentir-se melhor, uma vez que permaneceu por toda noite sem ingerir derivados etílicos.

6) Percepção subjetiva da necessidade de beber

Há uma pressão psicológica para beber e aliviar os sintomas da abstinência.

7) Reinstalação após a abstinência

Mesmo depois de períodos longos de abstinência, se o paciente tiver uma recaída, rapidamente restabelecerá o padrão antigo de dependência.

Essa sistematização da SDA, proposta por Edwards, teve sua validade clínica comprovada por inúmeros estudos e modificou a compreensão dos problemas relacionados ao álcool pela medicina, influenciando as classificações posteriores.

Diferença entre dependência e uso nocivo

Como já foi apresentado, existem as mais variadas maneiras de consumo do álcool, em uma complexa interação entre fatores biológicos, culturais e ambientais, onde o resultado, na maioria das vezes, não é o da dependência, mesmo para aqueles que em algum período da vida fizeram uso problemático desta substância.

A SDA proposta por Edwards cria uma distinção clínica entre o que é dependência e quais seriam os problemas relacionados, estabelecendo graus variáveis de risco e de problemas ocasionados pelo uso do álcool, dispostos em duas dimensões: uma associada com a psicopatologia do beber, a dependência do álcool, e outra na qual se distribuem os diversos problemas oriundos do uso ou da dependência. A Figura 1 mostra estas dimensões, sendo o eixo horizontal a representação da dependência e o eixo vertical a representação da dimensão problemas.

No Quadrante I localizam-se aqueles indivíduos que, à medida que vão ficando mais dependentes, passam a ter mais problemas relacionados ao álcool. No quadrante II encontram-se aqueles que, apesar de terem problemas com álcool (no trabalho, na família, acidentes de trânsito etc), não apresentam dependência alcoólica; ou seja, fazem uso nocivo. Já no quadrante III estão os indivíduos que não têm problemas nem dependência alcoólica. São os bebedores com consumo de baixo risco. O quadrante IV é inexistente, uma vez que não existe dependência alcoólica sem problemas relacionados ao consumo do álcool. Esta divisão em quadrantes é a usada nos dias de hoje para descrever o padrão de consumo de drogas. Indica as diferentes formas e níveis de relacionamento dos indivíduos com a bebida, estabelecendo padrões peculiares de consumo ao longo do tempo, ressaltando-se que a pessoa pode ter problemas com qualquer padrão de consumo.

Com sua publicação, o conceito de SDA exerceu forte impacto na confecção do DSM-III4, que caracterizava a categoria de abuso de álcool e outras drogas por padrões de uso patológico e prejuízos nas funções sociais e ocupacionais relacionados ao uso, e para a categoria de dependência, além disso, exigia a presença de tolerância ou de abstinência.

Uma das principais características da SDA, a distinção entre dependência e os problemas em conseqüência do uso de álcool, também inspirou os autores do DSM III-R7 a estabelecerem critérios para a identificação do uso nocivo de substâncias e a diferenciação com a dependência. A classificação da DSM-IIIR para uso nocivo e dependência alcoólica influenciou tanto o DSM-IV8 quanto o sistema de classificação desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde, CID-10.9

As classificações DSM-IIIR, DSM-IV e o CID-10 têm critérios similares para dependência alcoólica (Tabela 1). O mesmo não acontece, entretanto, com o diagnóstico de uso nocivo. Um ponto comum entre estas classificações é a impossibilidade do diagnóstico de uso nocivo em um indivíduo que atualmente preenche critérios para dependência. Por outro lado, o DSM-IV exclui o diagnóstico de uso nocivo num indivíduo que alguma vez foi dependente, enquanto a CID-10 não impede o diagnóstico posterior de uso nocivo em um indivíduo com diagnóstico de dependência no passado (Tabela 2). Embora Edwards tenha claramente demonstrado a distinção entre a dependência e o uso problemático do álcool, o que se confirmou em estudos posteriores, a classificação diagnóstica de uso nocivo, tal como é definida pelos critérios do CID-10 e DSM-IV, ainda permanece com validade e confiabilidade baixas.

Na avaliação individual do paciente, além de se diagnosticar a dependência ou o uso nocivo, é necessário que se pesquise o seu padrão de consumo de bebida para que se possa estabelecer o nível de gravidade de uso. Para essa medida utiliza-se o conceito de unidade de álcool, sendo que esta equivale de 10 a 12 g de álcool puro. Ao se multiplicar a quantidade de bebida por sua concentração alcoólica, obtém-se as unidades de álcool equivalentes. Embora seja uma questão controversa, os índices de consumo de 21 unidades ao longo da semana, para o homem, e de 14 unidades para as mulheres, são considerados de baixo risco de desenvolver problemas2 (Tabela 3).

Além disso, sendo um transtorno com múltiplas repercussões na saúde do indivíduo, a SDA também se apresenta em diversos graus e formas. A CID-10 traz a classificação F10 – Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de álcool, com as seguintes subdivisões9:

F10.0 – Intoxicação aguda

F10.1 – Uso nocivo

F10.2 – Síndrome de dependência

F10.3 – Estado de abstinência

F10.4 – Estado de abstinência com delirium

F10.5 – Transtorno psicótico

F10.6 – Síndrome amnésica

F10.7 – Transtorno psicótico residual e de início tardio

F10.8 – Outros transtornos mentais e de comportamento

F10.9 – Transtorno mental e de comportamento não-especificado

Considerações finais

Nos últimos anos, houve acúmulo crescente de evidências de confiabilidade e validade no diagnóstico de dependência do álcool, seja em estudos com amostras clínicas e populacionais, seja em estudos genéticos realizados em vários países do mundo.

Apesar de todos os avanços ocorridos, os critérios para dependência ainda podem ser aprimorados. Vários investigadores estão interessados em identificar subtipos de alcoolismo, que reagiriam de forma distinta a diferentes tratamentos. Além disso, os critérios para dependência e uso nocivo provavelmente diferem na população adolescente e este é um tópico importante para futuras pesquisas.

Quanto à classificação de uso nocivo de álcool, esta seguramente será um dos tópicos de discussão do grupo de trabalho da DSM-V, que investigará seu papel e sua definição, com o objetivo de aumentar sua validade e confiabilidade diagnósticas.10

Conclusão

A SDA é um transtorno psiquiátrico com severas repercussões individuais, sociais e econômicas de âmbito mundial.

O seu quadro clínico é bastante estudado e conhecido e, embora seus critérios diagnósticos sejam claros e tenham sido estabelecidos há vários anos, os transtornos relacionados ao uso de álcool ainda constituem um drama para a saúde pública, tanto pela dificuldade de seu tratamento quanto pelo desafio que a identificação dos casos iniciais e, às vezes, até dos quadros mais avançados – representam para os médicos.

Neste artigo, a SDA é apresentada em sua gênese e em seu desenvolvimento como conceito médico até atingir a definição atual, tanto na CID-10 quanto no DSM-IV. Os elementos que compõem seu quadro clínico são destacados em cotejamento com o quadro de uso nocivo de álcool.

Esta distinção é importante para que, na prática clínica, sejam investigados os problemas relacionados aos distintos modos de uso do álcool, que se apresentam em diversos níveis de risco e de gravidade e que evoluem como um continuum.

Incentiva-se, assim, o diagnóstico e o tratamento precoces e a interrupção do curso de uma enfermidade que avança de modo lento e insidioso, mas devastador em todas as dimensões da vida.

Referências

1. Bachelard G. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes; 1999. [ Links ]
2. Laranjeira R, Nicastri S. Abuso e dependência de álcool e drogas. In: Almeida O, Dractu L, Laranjeira R, Manual de psiquiatria. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1996. p. 84-9. [ Links ]
3. Grant GF, Dawson DA. Alcohol and drug use, abuse, and dependence: classification, prevalence, and comorbidity. In: McCrady BS, Epstein EE, editors. Additions – a comprehensive guidebook. London: Oxford University Press; 1999. p.10. [ Links ]
4. American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Third Edition. Washington, DC: APA; 1980. [ Links ]
5. World Health Organization (WHO). International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems. Eighth Revision. Geneva: WHO; 1968. [ Links ]
6. Edwards G, Gross M. Alcohol dependence: Provisional description of a clinical syndrome. British Medical Journal 1976;1:1058-61. [ Links ]
7. American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Third Edition-Revised. Washington, DC: APA; 1987. [ Links ]
8. American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Fourth Edition. Washington, DC: APA; 1994. [ Links ]
9. World Health Organization (WHO). International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems. Tenth Revision. Geneva: WHO; 1993. [ Links ]
10. Hasin D, Schuckit MA, Martin CS, et al. DSM–IV alcohol dependence: What do we know, what do we need to know? Alcoholism: Clinical and Experimental Research. 2003;27:244-52. [ Links ]

Fonte: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462004000500004&lng=pt&nrm=iso

Síndrome de Dependência do Álcool