SIDNEI NOGUEIRA DE SOUZA JUNIOR

RESUMO
Este artigo tem como objetivo salientar a importância do ciclo vital e a influência dos segredos familiares, que podem revelar as origens do estigma, da vergonha e do medo da revelação do uso de álcool e outras drogas.
A família é um sistema vivo, e, como tal, apresenta algumas fases, quase que invariavelmente. Assim como o indivíduo, a família passa por estágios de desenvolvimento, entre os quais ocorrem as chamadas crises. Estas são a manifestação de necessidades que o estágio findo já não atende e, portanto, é um pedido, às vezes gritante, de mudanças diversas. A crise se caracteriza por conflitos diversos. Contudo, ela não é essencialmente negativa, pois conduz ao crescimento, à transição para um novo nível necessário e importante no ciclo vital. Existem muitas relações entre as crises individuais e as crises familiares. A crise individual acaba por repercutir no conjunto familiar.
Por outro lado, um fato novo, que não é necessariamente um problema individual, pode atingir ao grupo de forma abrangente. Alguns dos estressores (crises) a serem enfrentados pelas famílias em situação de vulnerabilidade social tendem, por seu próprio conteúdo, a se mostrarem envoltos em uma aura de segredos, como por exemplo, a exposição ao uso de álcool e de outras drogas.
Além disso, é possível hipotetizar que o segredo pode ser usado por essas famílias como uma maneira de proteger a estrutura atual e evitar a necessidade de lidar com estressores adicionais, em um contexto já permeado por tantas dificuldades.
No entanto, os segredos tendem a prejudicar a comunicação e a intimidade dessas famílias, minando ou inviabilizando recursos que, por vezes, já se mostram escassos no que diz respeito à prevenção ou ao tratamento à dependência química.
Dessa forma, torna-se necessário compreender, dentro do ciclo vital familiar, o lugar que o segredo ocupa em famílias.
Palavras chave: dinâmica familiar; drogas; conflitos; problemas sociais; segredos familiares; terapia familiar; vulnerabilidade social, psicodinâmica conjugal.
1. INTRODUÇÃO
O nascimento da família ocorre com a união estável entre um homem e uma mulher. O casamento é uma instituição complexa, desde os motivos que o causam até os vários aspectos desse contrato. Existem as causas aparentes e as causas secretas ou inconscientes que levam um casal a se unir. As causas aparentes são as declaradas. As secretas dão origem aos segredos e mitos familiares. Esses mitos produzem normas bem sistematizadas sobre o papel de cada membro no convívio familiar.
Esses segredos se tornam a chave da durabilidade da união e estão relacionados a quatro princípios, conforme a visão de Pinkus e Dare, que são:
– Projeções de impulsos, desejos e necessidades inconscientes no parceiro.
– Reciprocidade e complementaridade das necessidades e medos de ambos.
– Muitos desses anseios e medos são derivados dos relacionamentos da infância.
– Esses anseios normalmente se referem ao relacionamento com os pais.
Os motivos individuais de se casar são inconscientes, e as escolhas são baseadas sempre nas primeiras relações. Os relacionamentos são sempre marcados por satisfação
e conflito e no casamento isso se torna ainda mais intenso. Mas ao desenvolvermos recursos para lidar com esses conflitos, há uma oportunidade de desenvolvimento da nossa personalidade. Por isso, o casamento ainda é considerado uma instituição tão valiosa.
A qualidade dos vínculos do convívio familiar na “primeira infância” estabelece um padrão básico de relacionamentos, e tendemos a repetir esses padrões em diferentes cenários. O casamento nos faz reviver uma série de conflitos mal resolvidos, e ao mesmo tempo apresenta a melhor situação para o sujeito mudar de posição no triângulo, e ser o protagonista da relação que invejava dos pais. A estabilidade que o casal alcança depende da flexibilidade que cada um terá para lidar com suas necessidades internas. Conforme solucionam esses conflitos, os indivíduos podem se desenvolver e amadurecer. As razões por que as pessoas se apaixonam são inconscientes, e muitas vezes só se descobrem coisas em comum muito tempo depois de já estarem juntos. Isso acontece quando ocorre uma comunicação inconsciente, e podemos gostar de alguém muitas vezes sem nem ao menos conhecer a pessoa. Essa comunicação inconsciente também acontece no chamado contrato secreto do casamento. Ele é cheio de influências e projeções. Se fosse redigido, o contrato secreto do casamento seria algo como:
“Tentarei ser algumas das coisas mais importantes que você quer de mim, mesmo que algumas sejam impossíveis, contraditórias e loucas, desde que você seja para mim algumas das coisas mais importantes que quero que você seja, mesmo que sejam impossíveis contraditórias e loucas. Não precisamos contar um ao outro o que essas coisas são, mas ficaremos zangados se não formos fiéis a isso.”
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 Contexto socioeconômico e dinâmico das famílias
Na contemporaneidade, tem-se tornado cada vez mais visível à diversidade de configurações familiares possíveis, as quais ultrapassam o modelo mãe-pai-filho. Nesse contexto destacam-se as famílias chefiadas por mulheres, que, segundo o censo de 2010, compunham aproximadamente 40% dos domicílios brasileiros. Também merecem destaque as famílias chefiadas por idosos, que, com os proventos de suas aposentadorias, assumem a responsabilidade pelo sustento de filhos, netos e bisnetos especialmente diante de situações de crise econômica. Esta é uma realidade que atinge mais de 17 milhões de famílias brasileiras, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Assim, segundo Mainetti & Wanderbroocke, as famílias brasileiras têm se diversificado ao longo do tempo e torna-se cada vez mais frequente a coabitação entre três ou quatro gerações. De acordo com a revisão da literatura realizada por essas autoras, há fatores, inclusive, que podem levar os avós a assumirem a responsabilidade integral pelos cuidados com os netos: despreparo ou impossibilidade dos pais para cuidarem dos filhos, bem como situações de desemprego, conflito com a lei ou uso de drogas.
O contexto de vulnerabilidade social pode vir a contribuir para a coabitação entre diferentes gerações ou o exercício do papel de cuidador por parte dos avós devido aos desafios que os pais tendem a enfrentar para oferecer um cuidado de qualidade a seus filhos nesse contexto. As famílias em vulnerabilidade social são compreendidas como aquelas cujas experiências se expressam no adoecimento de um ou vários membros, em situações recorrentes de uso de drogas, violência doméstica e outras condições que impeçam ou detenham o desenvolvimento saudável desse grupo.
Vulnerabilidade social é uma denominação utilizada para caracterizar famílias expostas a fatores de risco, sejam de natureza pessoal, social ou ambiental, que coadjuvam ou incrementam a probabilidade de seus membros virem a padecer de perturbações psicológicas. Tais riscos estão, em geral, associados a eventos de vida negativos, que potencializam e predispõem a resultados e processos disfuncionais de ordem física, social e/ou emocional.
Segundo Fulmer, em famílias em situação de vulnerabilidade social – assim como pode ocorrer em famílias pertencentes a quaisquer contextos –, as crianças são, por vezes, cuidadas pela pessoa da rede que está disponível na ocasião, sendo que podem ocorrer trocas constantes de cuidadores. Por um lado, essa organização possibilita que as necessidades físicas da criança sejam atendidas; por outro, essa constante mudança pode estar relacionada a questões emocionais, como medo de abandono, retraimento defensivo ou uma autoconfiança prematura. As adoções informais, comuns nesse contexto, também tendem a influenciar as relações fraternas. Primos podem tornar-se irmãos; avós serem conhecidas como mães, fazendo com que a criança e demais parentes mudem de posição dentro do sistema familiar. Parece haver uma tendência a se abordar as configurações adotadas em famílias em situação de vulnerabilidade social a partir de um prisma negativo, que não reconhece o impacto do sistema social na forma como as famílias se organizam. Assim, deve-se destacar que, embora essa estrutura possa parecer desorganizada quando vista a partir de perspectivas que enaltecem a primazia da família nuclear, é necessário compreender essas famílias considerando sua realidade histórica, social e econômica.
Nesse contexto, a família ampliada, que inclui as relações intergeracionais que ultrapassam a família nuclear, pode constituir um recurso para famílias em situação de vulnerabilidade social ao tornar possível o compartilhamento de funções importantes para a manutenção e o desenvolvimento do sistema familiar.
De acordo com Minuchin (1982), o sistema familiar possui uma estrutura, que se refere aos padrões relacionais estabelecidos entre os diferentes componentes do sistema familiar, os chamados subsistemas. Os subsistemas são definidos a partir das funções que os membros da família desempenham ou das características daqueles que os integram, tais como idade e gênero. A estrutura familiar tende a variar no decorrer do ciclo vital da família, de forma que as fronteiras podem se tornar mais ou menos permeáveis de forma a atender as necessidades com que a família se depara. A percepção que a família tem de si mesma e do seu contexto também tende a se transformar com o passar do tempo. Ao se deparar com situações de estresse, as famílias ativam os recursos de que dispõem na tentativa de manejá-las. Ao se verem bem-sucedidas diante desses desafios, a forma como se veem tende a ser reforçada. Essa informação é integrada à sua identidade e tende a ser generalizada para desafios futuros, o que favorece sua possibilidade de adaptação, uma vez que acredita ser capaz de superar desafios.
Segundo Fulmer, quando em situações de vulnerabilidade social, as famílias têm ampliada a probabilidade de se verem diante de eventos estressores inesperados – como a perda de um emprego ou da própria moradia, o desaparecimento de algum membro familiar, a exposição à violência e a pobreza – vendo-se diante de situações em que as demandas parecem superar os recursos de que dispõem. É possível conceber como esse acúmulo de estressores pode dificultar o processo de reorganização da família. Quando a estrutura familiar não acompanha as necessidades desenvolvimentais dos membros de uma família, ao longo do ciclo vital, pode haver o desenvolvimento de comportamentos sintomáticos. Esse processo tende a apresentar, ainda, repercussões na forma como a
família vê sua capacidade de enfrentar as dificuldades com que se defronta, aumentando sua insegurança em relação a desafios futuros.
Atualmente os terapeutas de família têm privilegiado uma visão dessas famílias como multinecessitadas, ou seja, “sistemas carentes de suporte social, repletas de desafios e necessidades não correspondidas”. Segundo Gómez e Kotliarenko, para que essas famílias possam responder de forma satisfatória aos desafios com que se defrontam – ou seja, demonstrarem resiliência – é necessário reduzir as demandas familiares, aumentar seus recursos e trabalhar o significado atribuído aos eventos estressores.
De acordo com Walsh, alguns dos importantes recursos de que a família dispõe na promoção de sua resiliência são (a) seus padrões organizacionais, ou seja, sua estrutura; (b) seu sistema de crenças; e (c) seus processos de comunicação. Segundo essa autora, a comunicação “facilita a resiliência trazendo clareza a situações de crise, encorajando uma expressão aberta das emoções e contribuindo para formas colaborativas de resolução de problemas”. Assim, não é difícil perceber como a presença de segredos pode ser prejudicial à resiliência familiar.
2.2 O segredo familiar
Segundo Brown-Smith, um segredo familiar pode ser compreendido como a omissão intencional de qualquer informação que influencia diretamente os demais membros de uma família ou que lhes diz respeito. Deve ser, assim, diferenciado da privacidade, cujo conteúdo diz respeito apenas àquele que o guarda, não sendo considerado relevante para a vida, as escolhas ou o desenvolvimento dos demais.
A literatura demonstra que os segredos familiares podem ser classificados em diferentes categorias (Brown-Smith, 1998). Podem diferir, por exemplo, no que se refere à sua amplitude (quantidade de conteúdo que abrangem), sua duração, sua profundidade (referindo-se à intimidade envolta pela informação omitida) e sua valência. Neste sentido, podem ser positivos ou nocivos. Os positivos são temporários, normalmente ligados a rituais, como a entrega de presentes ou os segredos mantidos pelos adolescentes para iniciar seu processo de individuação. Os segredos nocivos destroem a confiança nos relacionamentos, podendo criar sintomas no sistema familiar. Por fim, os segredos familiares devem ser compreendidos quanto às suas fronteiras (Brown-Smith, 1998), ou seja, podem ser compartilhados, quando todos os membros de uma família protegem uma informação daqueles que são vistos como não pertencentes ao sistema; internos, quando o segredo é mantido por um subsistema; e individuais, quando uma única pessoa omite um conteúdo dos demais membros da família.
No entanto, como bem assinalam Pincus e Dare (1987), em uma família, segredos jamais “permanecem como propriedades do indivíduo, considerando que os outros membros da família iniciam, como resposta, um processo de influência mútua, fortalecendo ou enfraquecendo os efeitos do segredo”. O segredo, portanto, pode ser compreendido como um fenômeno fundamentalmente sistêmico por estar estreitamente ligado aos relacionamentos. Quem sabe do segredo, quem não sabe: essas questões formam díades, triângulos, alianças e coalizões na família, orientando o terapeuta acerca de que forma tais segredos influenciam os relacionamentos. Os segredos familiares podem inclusive aumentar em complexidade, pois a própria existência de uma díade que guarda um segredo torna-se um segredo, o que pode tornar-se um hábito familiar transmitido para outras gerações. As lealdades familiares são também frequentemente guiadas pelo segredo. A capacidade de um sujeito de guardar o segredo pode estreitar
ou prejudicar os relacionamentos, talvez pela crença de que, perante uma solicitação de sigilo, sua simples quebra seria o maior ato de deslealdade.
Discrepâncias entre o dito e o não dito, o verbal e o não verbal, passam a marcar os comportamentos familiares. Aqueles que guardam o segredo precisam tê-lo constantemente em mente para não correrem o risco de revelá-lo acidentalmente. “Manter um segredo que vive e respira todos os dias em uma família – câncer, diabetes, alcoolismo, uso de drogas, morte iminente – requer as habilidades de um acrobata em uma corda bamba”. Assim, cria-se um cenário em que, embora o segredo esteja à vista de todos, não se pode falar sobre ele ou esclarecer suas implicações.
Apesar de a intenção, muitas vezes, ser protetiva, crianças costumam perceber a tensão existente e, por não conseguirem explicar o que está acontecendo, podem culpar a si mesmas (Walsh, 2006). Ao buscarem ‘explicar o inexplicável’, constroem crenças e mitos que podem manifestar-se por meio de comportamentos sintomáticos. Crianças costumam perceber a tensão no sistema familiar, como bem demonstraram Rhodes, Bernays e Houmoller (2010) em sua pesquisa quanto à experiência da parentalidade de dependentes químicos. Os autores constataram que, embora os pais tentassem manter sua dependência em segredo de seus filhos, como forma de limitar possíveis danos à criança, os filhos identificavam que algo estava errado, mesmo sem saber especificar o quê.
A influência do segredo familiar no desenvolvimento pessoal é amplamente discutida. Em seu estudo, Baker et al. compararam um grupo de 29 jovens que já haviam cometido crimes sexuais com um grupo de 32 jovens com transtorno de conduta. Os autores constataram que as famílias do grupo de jovens que cometeram assédio sexual possuíam mais relacionamentos familiares balizados pelo segredo e propõem o segredo de família como um fator de risco ao desenvolvimento. Em seu estudo quanto ao segredo da adoção nas famílias entrevistaram 144 pessoas adotadas sobre a abertura ou o sigilo quanto à adoção, por meio de questionários e entrevistas qualitativas. Os autores constataram que as famílias adotivas que mantinham um relacionamento honesto e aberto quanto à adoção tendiam a apresentar mais comportamentos de cuidado e menos comportamentos de controle. Em oposição, famílias nas quais a adoção manteve-se em segredo apresentavam membros com maiores sentimentos de solidão, apego evitativo e ansioso bem como maiores índices de problemas em relacionamentos íntimos.
A manutenção do segredo também pode se mostrar prejudicial àqueles que o guardam. Em uma pesquisa com 342 indivíduos adultos que guardavam um segredo, constataram que a ruminação relativa ao segredo mostrou-se correlacionada negativamente à autoestima e positivamente com preocupações quanto à própria identidade. Ou seja, aqueles que mais se preocupavam com o segredo apresentavam uma menor autoestima e mais preocupações em relação à própria identidade.
Assim, o segredo e o sintoma frequentemente mostram-se relacionados, podendo ser compreendidos de quatro maneiras. Primeiramente, como já abordado, o sintoma pode surgir por conta da constante manutenção do segredo, pois aqueles que o guardam tornam-se ansiosos pelo receio de que alguém o descubra, enquanto aqueles que não têm conhecimento do segredo tornam-se ansiosos por perceberem a tensão no sistema.
2.3 O segredo e a terapia de família
Os segredos familiares apresentam um verdadeiro dilema para o sistema terapeuta-cliente: a revelação de um segredo pode ter efeitos curativos, perigosos, reconciliatórios ou até mesmo divisórios, tendo grande importância para o processo terapêutico e o
desenvolvimento da família. Contudo, o trabalho terapêutico não deve focar somente a revelação.
O terapeuta deve estar atento para “não presumir de modo simplista que a sinceridade, apenas, oferece a cura”. Os terapeutas devem, ainda, considerar os objetivos da manutenção do segredo. O segredo mantido por intenções protetivas é diferente daquele mantido por coerção ou abuso, sendo normalmente mais fácil reestabelecer a confiança em segredos protetivos. A revelação de um segredo pode acabar por criar outros ou exercer pressão sobre outros segredos ainda mais obscuros, fazendo necessária a existência de um ambiente terapêutico capaz de abarcar as mais diversas respostas decorrentes de uma eventual revelação de segredos familiares. Assim, os terapeutas devem criar um ambiente seguro e apto a sustentar as diversas percepções (frequentemente contraditórias) do segredo e de sua manutenção. Enquanto os significados vinculados ao segredo mudam, torna-se possível a mudança do relacionamento entre as gerações.
2.4 Psicodinâmica conjugal
O processo de formação do laço conjugal ocorre mediante a articulação de várias dimensões. O estudo das motivações inconscientes presentes na escolha amorosa, do legado familiar e dos padrões interacionais estabelecidos nas famílias de origem é indispensável para um melhor entendimento da constituição da conjugalidade. Nesse capítulo, buscamos reunir contribuições do referencial psicanalítico e do sistêmico visando a uma compreensão mais ampla da psicodinâmica do casal.
Os autores psicanalistas ressaltam que sentimentos infantis são inconscientemente reatualizados na vivência da conjugalidade, propiciando aos parceiros a reedição e a elaboração de experiências vividas na infância, sobretudo aquelas relativas à relação mãe/bebê, ao narcisismo e ao Édipo. A questão narcísica está relacionada a uma tentativa de resgatar a experiência vivida na relação mãe/bebê. As vivências procedentes do Édipo ressurgem na relação conjugal, como uma tentativa de resolver questões inacabadas.
Essa revivescência de experiências infantis na relação atual indica a não aleatoriedade do encontro amoroso. Nesse processo, passado e presente se misturam na constituição da história do casal.
Pincus e Dare (1981) afirmam que desejos não realizados ou sentimentos dolorosos presentes na história do indivíduo tendem a reaparecer nas relações conjugais, mediante a utilização do mecanismo de identificação projetiva. Os aspectos indesejados de si são projetados no parceiro. Tal mecanismo está presente em outras relações. Na conjugalidade, contudo, devido à intensidade do laço afetivo, a identificação projetiva torna-se um mecanismo central. A conjugalidade é constituída a partir de motivações e pactos inconscientes. O casal faz acordos inconscientes baseados nas necessidades dos parceiros. Na conjugalidade os parceiros revivem padrões de interação familiar e elaboram vivências infantis, podendo construir soluções criativas para antigos conflitos ou repetir experiências não elaboradas.
A família de origem transmite para o sujeito-parceiro afetos, representações, fantasias e também conteúdos referentes à falta, à vergonha, a objetos perdidos ou enlutados. A partir dessa herança, o sujeito constituirá seu mundo interno. A literatura psicanalítica da transmissão psíquica aponta para uma relação existente entre a identificação com as figuras parentais e a organização inconsciente do casal.
A perspectiva sistêmica, por outro lado, aborda a transmissão da herança familiar por meio dos padrões interacionais repetidos nos diversos sistemas e nas sucessivas
gerações. Segundo o enfoque sistêmico, o casal como um subsistema familiar encontra-se sujeito às leis que regem os sistemas mais amplos. Destaca-se a interdependência entre os elementos de uma família, a mudança em cada membro afeta todas as outras partes componentes desse sistema.
A família de origem produz padrões interacionais de comportamento que são transmitidos às gerações seguintes. Os padrões de comunicação, as crenças, as regras e os modelos de afetividade são passados aos descendentes como parâmetros para a construção de suas próprias relações. Nesse sentido, a forma como o novo casal interage e estabelece sua relação conjugal está relacionada ao modelo vivido em suas famílias de origem. O casal recebe o legado das gerações precedentes e representa um elo na cadeia transgeracional, repetindo e elaborando padrões interacionais.
Na complexa teia das relações familiares destacamos o conceito de lealdade como um fator de exigência ao cumprimento das expectativas do grupo familiar. Os compromissos de lealdades são repetidos intergeracionalmente e influenciam na psicodinâmica do novo casal, na medida em que os parceiros estão comprometidos com suas famílias de origem.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sintoma (alcoolismo e outras drogas, Aids, transtornos mentais, etc.) pode ser mantido em segredo da família ou pela família, frequentemente por conta da vergonha e estigmatização inerentes ao sintoma, o que compromete os recursos aos quais a família pode recorrer. Embora a decisão sobre manter ou revelar um segredo seja complexa e haja uma constante tensão entre as duas opções, diferentes motivos podem contribuir para que um membro de uma família opte por sua manutenção. Entre eles, podemos mencionar o desejo de proteger a si mesmo ou a membros da família, o desejo de resguardar a própria imagem ou a imagem familiar e o temor de que falar sobre o assunto pode piorar a situação. Tende a haver, portanto, uma preocupação em relação aos possíveis riscos relacionados à revelação do segredo. A expectativa de que um membro da família responda de forma negativa ou agressiva à revelação de um segredo está relacionada à continuação do segredo em si. Assim tem origem o ciclo do segredo, que se perpetua no sistema familiar. Uma possível solução para quebrar tal ciclo pode ser a simples revelação do segredo. No entanto, embora a intimidade entre os membros de uma família possa contribuir para a revelação dos segredos, esta nem sempre é facilmente alcançada. Deve-se considerar ainda que cada membro de uma família tende a atribuir um significado específico ao segredo em questão. Aquilo que um percebe como um segredo visando à proteção do sistema familiar pode ser visto por outro como traição.
Por fim, o segredo familiar é permeado pela relação entre o sistema cultural, familiar, e psicológico, devendo ser compreendido por meio de seu contexto socio-histórico. O segredo familiar, então, é marcado pelas regras sociais quanto a gênero, cultura e classe social, por exemplo. Dessa forma, não é no segredo em si, mas em seu conteúdo que se encontram “as origens do estigma, vergonha e o medo da revelação e da dissolução da família, que alimenta poderosamente o processo de manutenção do segredo”.
4. REFERÊNCIAS
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Fulmer, R. H. (1995). Famílias de baixa renda e famílias com formação profissional: Uma comparação da estrutura e do processo de ciclo de vida. In B. Carter & M. McGoldrick (Eds.), As mudanças no ciclo de vida familiar: Uma estrutura para a terapia familiar (pp. 468-497; 2ª ed.). Porto Alegre: Artmed.
Imber-Black, E. (1994). Segredos na família e na terapia familiar: Uma visão geral. In E. Imber-Black (Ed.), Os segredos na família e na terapia familiar (pp. 15-39). Porto Alegre: Artes Médicas.
Mainetti, A. C., & Wanderbroocke, A. C. N. S. (2013). Avós que assumem a criação de netos. Pensando Famílias, 17(1), 87-98.
Mason, M. J. (1994). Vergonha: Reservatório para os segredos na família. In E. Imber-Black (Ed.), Os segredos na família e na terapia familiar (pp. 40-56). Porto Alegre: Artes Médicas.
Papp, P. (1994). O caruncho no broto: Segredos entre pais e filhos. In E. Imber-Black (Eds.), Os segredos na família e na terapia familiar (pp. 76-93). Porto Alegre: Artes Médicas.
Prado, L. C. (1996) Metáforas, segredos e mitos ao longo do ciclo vital: Uma reflexão clínica. In L. C. Prado (Ed.), Famílias e terapeutas: Construindo caminhos (pp. 199-212). Porto Alegre: Artes Médicas

A importância do ciclo vital e a influência dos segredos dentro das famílias em relação ao uso de álcool e outras drogas