Raphael Gomes de Souza

 

RESUMO

A presente pesquisa discute a relação entre toxicomania e a relação do dependente com sua família. Pretende-se responder à problemática꞉ É possível estabelecer uma relação entre a toxicomania e a neurose? O objetivo geral da presente pesquisa é buscar evidências científicas que relacionem à neurose à predisposição para o desenvolvimento de toxicomania. Os objetivos específicos são definir toxicomania, definir neurose e discutir se indivíduos com características de neurose possuem maior  predisposição ao desenvolvimento da toxicomania, por meio de uma revisão de literatura. Conclui-se que existe uma relação entre toxicomania e neurose na medida em que indivíduos com problemas familiares, sob o ponto de vista da psicanálise, são mais propensos ao desenvolvimento de vícios.

Palavras-chave꞉ Toxicomania, neurose, revisão de literatura.

 

 

INTRODUÇÃO

O conhecimento neurobiológico de vícios sugere que após o uso crônico desse tipo de substância ocorrem algumas mudanças no cérebro em longo prazo que poderiam explicar muito dos comportamentos associados com o vício, como o consumo compulsivo ou concentração do interesse em torno do consumo e o abandono de outras áreas (VOLKOW E LI, 2004).

Estudos recentes de neuroimagem cerebral revelaram uma ruptura subjacente em regiões que são importantes para os processos de motivação, recompensa e controle inibitório. Anormalidades no córtex orbitofrontal (região do cérebro associada com comportamento compulsivo) poderiam estar por trás da natureza compulsiva dos viciados em drogas ou a sua incapacidade para controlar os desejos de consumir quando eles são expostos a drogas (VOLKOW E LI, 2004).

Assim, embora inicialmente a experimentação e o uso recreativo de drogas sejam voluntários, uma vez estabelecido o vício, esse controle é significativamente afetado.

Para a dependência se desenvolver é necessária a exposição crônica à substância e envolve interações complexas entre fatores biológicos e ambientais, o que poderia explicar por que algumas pessoas tornam-se viciadas e outras não, e o fracasso de modelos puramente biológicos ou puramente ambientais ao tentar entender esses distúrbios (DODES, 2014).

Existem importantes descobertas sobre como os medicamentos afetam a expressão gênica, os produtos proteicos e os circuitos neuronais, e como esses fatores biológicos podem afetar o comportamento humano. Vários comportamentos normais durante a adolescência, tais como assumir riscos, encontrar novidades ou responder à pressão dos pares aumentam a propensão a experimentar drogas ilegais ou legais, o que pode ser um reflexo de um desenvolvimento incompleto de certas áreas do cérebro (por ex. a mielinização em algumas regiões do lobo frontal) envolvidas nos processos executivos e de controle (DODES, 2014).

A questão seria por que há indivíduos que não sucumbem à pressão dos colegas, ou estão cientes dos riscos envolvidos em certas situações, assumindo o controle sobre do que eles querem ou não querem experimentar?

Seguindo processos neurobiológicos, sabemos que aumenta a dopamina (um neurotransmissor associado com a previsão de recompensa e a relevância, esta definida como a capacidade para produzir uma ativação ou desencadeamento uma mudança comportamental) induzida por drogas facilita a aprendizagem condicionada, portanto, os estímulos neutros que estão associados à droga são condicionados, por exemplo, encontros com certas pessoas, lugares como discotecas, etc (DODES, 2014).

Uma vez que esses eventos são condicionados, pode-se aumentar a dopamina e desencadear o desejo de usar, o que explicaria o risco em pessoas com o vício terem uma recaída quando expostas a um ambiente no qual ele usou drogas no passado, configurando o que Ingelmo et al (2000) chamam de “contexto drogado” e a teoria do incentivo.

Nesse contexto emerge a problemática꞉ É possível estabelecer uma relação entre a toxicomania e a neurose?

O objetivo geral da presente pesquisa é buscar evidências científicas que relacionem à neurose à predisposição para o desenvolvimento de toxicomania.

Os objetivos específicos são definir toxicomania, definir neurose e discutir se indivíduos com características de neurose possuem maior  predisposição ao desenvolvimento da toxicomania, por meio de uma revisão de literatura.

 

2 VISÃO HISTÓRICA DA TOXICOMANIA

Desde o início da história da humanidade e do seu desenvolvimento cultural, constatou-se que uma das formas de explicar o funcionamento do universo era através do consumo de substâncias químicas que alteravam a percepção linear da realidade, o consumo de as drogas têm estado presentes por razões sociais e religiosas, dentro de rituais xamânicos, médicos, divinatórios ou festivos que eram controlados pelos homens que governavam a tribo, a comunidade e assim viviam em equilíbrio com o universo (INGELMO et al, 2000).

Pode ser visto em uma rápida jornada histórica que as drogas acompanharam o homem ao longo de sua evolução. A busca por novas experiências sensoriais e a alteração da consciência são observadas em antigos registros arqueológicos. No entanto, até a era contemporânea, eles não apareceram como um problema para diferentes culturas. É no século XIX, quando o uso de drogas colocará um problema social para as sociedades ocidentais, o consumo manifesta para muitos o perigo do que não é mais regulado por rituais coletivos, vai além da lógica do culturalmente estabelecido, do socialmente regulamentado. Por outro lado, cria para os outros uma atração por um modo de vida que é gerenciado a partir de outro sistema de valores. Este sistema é construído do lado de fora, ao lado e, muitas vezes, contra valores socialmente aceitos (INGELMO et al, 2000).

Tal como definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) droga é qualquer substância que, quando introduzida num organismo vivo por qualquer via (por inalação, ingestão, intramuscular, intravenosa), é capaz de atuar sobre o sistema nervoso central, causando uma alteração física e / ou psicológica, a experimentação de novas sensações ou a modificação de um estado psíquico, isto é, capaz de mudar o comportamento da pessoa, e que possui a capacidade de gerar dependência e tolerância em seus consumidores.

Em outras palavras, a característica que diferencia as drogas de outras substâncias existentes é que ela afeta o sistema nervoso central, produzindo dependência física e / ou psicológica de uma substância, entendendo que o dependente químico não consegue parar de consumir para desenvolver sua vida normal.

A origem, depois das drogas, é o começo da civilização, porque as drogas não são para intoxicação. A identidade que articula a pessoa com o contexto social, constitui o ponto de encontro antes de dois elementos complementares: a história da vida do indivíduo e a história da sociedade. Isso quer dizer que o problema se desenvolve a partir da relação que a pessoa estabelece com a droga, o tipo de droga, a forma de uso em determinado contexto (INGELMO et al, 2000).

A questão da toxicodependência é muito extensa, o que também toca aspectos da nossa cultura, de onde foram feitos esforços para compreender o fenômeno do consumo de drogas. Hoje há uma variedade de ofertas para tratar a dependência de drogas, a partir do tratamento ambulatorial, que é feito externamente, a condição primária é que a pessoa não está muito envolvida na dependência, a remodelação cognitiva é usada dependendo da habilidade do terapeuta (DODES, 2014).

Por outro lado, existe o modelo médico, que é realizado em hospitais psiquiátricos, onde o atendimento é puramente médico com administração de medicamentos (antidepressivos, ansiolíticos); então vêm as comunidades terapêuticas, baseadas em um modelo científico onde basicamente se modificam comportamentos, hábitos, responsabilidades, tudo com a intervenção de um psicólogo e de um assistente social (DODES, 2014).

 

3 A TOXICOMANIA PELO OLHAR NEUROLÓGICO

Ingelmo et al (2000) tentam localizar o impulso de consumir drogas nas vias mesotelencefálicas da dopamina cerebral, uma vez que aumentam sua neurotransmissão. Uma função psicológica desse sistema neural é atribuir um caráter de incentivo à percepção e à representação mental dos eventos associados à ativação do sistema.

O uso repetitivo de drogas que causam dependência produz modificações graduais nesse sistema neural, tornando-o cada vez mais sensível a elas e aos estímulos relacionados. Essa sensibilização ao incentivo transforma o desejo comum em “desejo compulsivo”. Depois de bastante exposição, o prazer de comportamento viciante se torna irrelevante porque o sistema neural é construído para estimular o corpo para alcançar um objetivo, então o que se segue é o uso compulsivo de drogas apesar dos efeitos adversos fortes, como mal estar, problemas sociais, perda de emprego, dificuldades em estabelecer uma rotina. Isso explicaria o fenômeno clínico comum que os pacientes dizem que eles não “como” fumar cigarros ou usando cocaína ao sentir desejos intensos que podem, aparentemente, apenas ser satisfeitos por meio do consumo de drogas.

Isso conduz a uma reflexão sobre as diferenças interindividuais na vulnerabilidade desse sistema, a vulnerabilidade interindividual que, por sua vez, seria desde o início em interação com o ambiente. O vício como intolerância às afeições.

Khantzian (2014) levanta a hipótese de que a preferência por um medicamento supõe algum grau de especificidade psicofarmacológica. Os opióides atenuam sentimentos de raiva ou violência, álcool e depressores aliviam a sensação de isolamento, vácuo e ansiedade e estimulantes (anfetamina, cocaína, etc) melhoram a hipotonia, aliviam a depressão ou neutralizam e hiperatividade e os déficits de atenção.

Khantzian localiza as origens da incapacidade de regular as emoções na primeira infância e uma falha da internalização da capacidade de auto-atendimento dos pais. Essa capacidade é desenvolvida a partir dos cuidados e proteção dispensados ​​pelos pais desde a primeira infância (conceitos de apoio, mãe suficientemente boa, etc.) e, mais tarde, pelas interações entre a criança e seus pais.

Por não possuírem essas internalizações, as pessoas dependentes apresentam dificuldade para regular a autoestima ou os relacionamentos, e cuidar de si mesmas. Essa ênfase em afetar a intolerância relacionada ao fracasso inicial no desenvolvimento é semelhante à de Zinberg (1975) e krystal (1988, 1995).

A diferença é que Khantzian considera a auto medicação como um defeito de si, como uma função que nunca se desenvolveu, enquanto Cristal considera a auto medicação como tendo sido consequência de uma figura parental excessivamente controladora, (assim na origem também seria o fracasso de cuidadores) formaria indivíduos dependentes que não seriam plenamente capazes de cuidar de si, mas que acreditam que, se assumirem o controle de sua vida ou funções afetivas, que acreditam que pertencem à mãe, teriam cometido uma transgressão punível com um destino pior que a morte (KRYSTAL, 1995 p.85).

A hipótese da automedicação é constantemente confirmada quando se escutam os relatos dos pacientes sobre como respondem a estados afetivos intoleráveis ​​por meio do uso de drogas.

Dodes (2014) sugere que as pessoas dependentes têm uma vulnerabilidade narcisista de se sentirem sobrecarregadas por experiências de impotência / desamparo. O papel central da impotência / desamparo na criação do trauma psíquico é citado por Freud (1926, pp. 166-177).

Dodes (2014) acredita que a colocação em funcionamento do comportamento aditivo serve para restaurar um sentimento de poder contra a experiência de desamparo. Também sugere que os vícios são soluções de compromisso idênticas às compulsões. Através do comportamento aditivo, um sentimento de poder é restaurado como um substituto para a reafirmação do poder no mundo real.

Para Dodes (2014), a compreensão empática que os pacientes foram traumatizados pela impotência e estão respondendo de forma desorientada que permite fazer intervenções que permitam avaliar o ritmo sem encorajar comportamento:

  • unidade agressiva para controlar a própria existência com integridade não é nada para se envergonhar;
  • o paciente precisa lutar para estar ciente do que realmente quer, em vez de continuar dominado pelas respostas viciantes;
  • conflitos e vulnerabilidades em relação a reafirmação do Eu e a dificuldade de tolerar desamparo quando seria necessário fazê-lo têm suas origens em experiências de infância que precisam ser lembradas e tratamento elaborado.

A formulação original de Winnicott do objeto transicional (1951) descreveu isso como um vício. Kernberg (1975) descreve várias dinâmicas de objetos no vício: pode substituir uma imagem parental na depressão, ou a bondade da mãe em uma ressonância limítrofe, ou pode alimentar um grande sentimento do ser no narcisismo. Tudo dependerá da história pregressa do paciente, sempre relacionada ao tipo de relações, elos que ele estabeleceu com sua família.

Wurmser (1981) inclui a dinâmica da dificuldade de internalizar interações com os pais como parte do funcionamento eficaz do superego, o que resulta em alternando entre a apresentação de proibições internas e não razoáveis comportamentos rebeldes viciantes e completamente desordenados por outro.

A negação do vício tem a função de proteger o relacionamento com o vício. A negação é parte da fisiopatologia da doença (Johnson e Clark, 1989). Indivíduos viciados não são capazes de satisfazer suas necessidades de dependência adequadamente em um relacionamento humano e não são capazes de tolerar ficarem sozinhos; sua necessidade de permanência do objeto é fornecida por qualquer das atividades compulsivas escolhidas.

O uso de um vício é semelhante aos transtornos de personalidade borderline ou narcisista de Kernberg (1975). Em narcisismo, a incapacidade de tolerar o isolamento é alcançada pela dependência de um conjunto organizado de fantasias idealizadas internamente que permitem que o indivíduo seja indiferente para as entradas e saídas das relações reais.

Em um indivíduo com personalidade limítrofe, a instabilidade afetiva ativa uma necessidade constante e desesperada de ser consolada e tranquilizada por uma pessoa idealizada. Além disso, a relação não é com fantasias internas idealizadas ou com pessoas idealizadas, mas sim com um comportamento aditivo idealizado. O indivíduo se apega ao comportamento aditivo como um meio de evitar a experiência interna de abandono. Aspectos comuns dos três pontos de vista anteriores (DODES, 2013).

Os trabalhos desses autores consideram completamente errônea qualquer sugestão de que o vício é impulsionado por um desejo de prazer. O modelo de sensibilização ao incentivo sugere que o caminho mesotelencefálico leva ao desejo compulsivo e que o prazer logo se torna um fator irrelevante no uso aditivo do medicamento. O modelo de intolerância aos afetos afirma que a falta de habilidade para lidar com estados afetivos resulta no fugaz recuo para os estados alterados produzidos pela droga (DODES, 2013).

De acordo com o modelo de dependência como substituto do objeto, a falta de capacidade de usar relações internas ou externas resulta na necessidade constante de comportamentos aditivos como objetos transicionais. A impotência / desamparo é considerada um estado afetivo fundamental nos modelos psicanalíticos (DODES, 2013).

Dodes (2013) sugere que a impotência intolerável é o resultado do trauma psíquico de sentir-se sobrecarregado por qualquer estado afetivo que cada indivíduo considere mais problemático.

Assim, como Khantzian sugere, em seu modelo de automedicação, a função das drogas é evitar certos efeitos intoleráveis. A pessoa viciada enfrenta a escolha entre a submissão impotente à autoridade interna ou externa ou rebelião desafiadora contra ela, uma vez que ele é incapaz de lidar com as afeições de qualquer outra forma. Essas três perspectivas são frequentemente explicações coincidentes e complementares, uma vez que uma ou outra dessas dinâmicas pode aparecer mais proeminentemente como uma força motivacional.

 

CONCLUSÃO

 

Com base nas discussões realizadas é possível estabelecer uma relação entre a relação do indivíduo com a família e a sua tendência ao consumo de drogas, embora essa relação não seja determinística. Não significa que todo indivíduo que tem problemas familiares vai utilizar drogas, mas que indivíduos que possuem alguma fragilidade em suas relações familiares, sobretudo maternas, possuem uma maior predisposição ao consumo de drogas, sejam elas medicamentos ou drogas ilícitas.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

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[1]

Relação entre relações familiares e toxicomania