fonte: O Globo
A declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso propondo a legalização da maconha no país — e talvez no futuro até da cocaína — reavivou o debate em torno da política de drogas do Brasil. Segundo Barroso, a iniciativa seria uma maneira de aliviar a crise no sistema carcerário brasileiro, no qual, assim como em outros países, uma grande proporção dos presos está internada por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Especialistas argumentam tanto a favor quanto contra a legalização.
— Nas últimas décadas, o endurecimento das leis contra o tráfico de drogas levou a uma explosão do encarceramento — lembra o vereador Renato Cinco (PSOL-RJ), integrante do coletivo da sociedade civil “Movimento pela Legalização da Maconha”, que promove a Marcha da Maconha na cidade. — Grande parte dos homens e a maioria das mulheres estão presos por tráfico, e isso só serve para fortalecer o crime organizado, que nasce nas cadeias, e não nas ruas.
Já a coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (Cesec-UCAM), Julita Lemgruber destaca que o estado do Rio registrou, no ano passado, 5.033 homicídios — o equivalente a 13,7 casos por dia — a maioria relacionada a um modelo de confronto às drogas que julga “falido”.
— Se considerarmos que “vencer” as drogas é algo possível, vamos nos envolver com uma guerra em que morrerão pessoas de todos os lados — assinala a socióloga. — Um mundo mais seguro depende da legalização da produção, distribuição e consumo de todas as drogas ilícitas. Naturalmente esta medida será feita de maneira gradual, porque precisaremos de um grande investimento em campanhas de informação.
Renato Cinco concorda:
— O ministro Barroso fez muito bem em chamar a atenção para a questão da guerra às drogas, que não aumentou em nada a segurança da população. Afinal, quanto mais matriculados nas “universidades do crime” que são nossas prisões tivermos, mais criminosos perigosos teremos nas ruas.
Mesmo adversários da legalização reconhecem que, neste ponto, os defensores da medida têm razão. É o caso, por exemplo, do psiquiatra Jorge Jaber, especializado em dependência química pela Universidade de Harvard (EUA), que considera mais importante abordar a questão pelo lado da saúde pública do que pelo viés da segurança.
— Há a constatação de que a criminalidade no país é fortemente abastecida pela proibição do uso de algumas substâncias, então do ponto de vista jurídico ter tantas penitenciárias lotadas de traficantes estimula a ideia de que, se a maconha for liberada, isso pode mudar — diz. — Mas neste momento o foco da discussão deve ser se a legalização da maconha será boa ou ruim para a saúde pública do povo brasileiro, e deste ponto de vista ela será catastrófica. Acredita-se que com a liberação haverá regulamentação e controle, mas isso já não acontece nem com o álcool e o tabaco, que são vendidos para crianças e adolescentes.
A psiquiatra Analice Gigliotti, integrante da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria, segue a mesma linha:
— Compreendo a preocupação do ministro com as cadeias, mas também devemos nos preocupar com a saúde da população, que é prejudicada pela droga. Há evidências de que o consumo de maconha aumenta a incidência de crises psicóticas, particularmente entre adolescentes. Estes usuários perdem motivação e chances de entrar na universidade, ficam encostados e sem emprego.
Analice ressalta também que não se pode afirmar que a legalização acabaria com a violência do crime organizado.
— O Brasil não está preparado para a legalização das drogas — avalia. — A população deve refletir se o sistema público de saúde conseguirá lidar com o aumento do consumo de maconha entre os jovens.
O mesmo ponto é abordado por Jaber:
— A psiquiatria não tem sido favorecida pelo Ministério da Saúde. As pessoas não têm onde procurar ajuda. E em muitos casos o uso de drogas se traduz em um descontrole comportamental que ou chamam a polícia ou chamam a ambulância. E como a maioria das pessoas que usa drogas não é criminosa, só está sob o efeito de uma substância, precisaremos de um sistema médico fortemente abastecido pela psiquiatria, se não vamos ter um grande número de usuários, de pessoas descontroladas, que não terão acesso a serviços básicos de tratamento.
Nem todos profissionais da área de saúde, porém, concordam com esta avaliação.
— Como médico, não consigo ver nenhum benefício para uma pessoa que está doente ficar doente e presa — diz Francisco Inácio Bastos, especialista em saúde coletiva e pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica da Fiocruz (LIS/Icict). — A prioridade é tratar as pessoas e encaminhá-las, não importa se com tratamento médico ou religioso. Importa é elas se sentirem bem. É uma hipocrisia: o cara que fica preso não fica abstinente, e sai quase trucidado da cadeia. No que isso ajuda?
Julita, por sua vez, destaca estudos médicos que apontam que o álcool e o tabaco têm efeito pior ao usuário e ao seu entorno do que a maconha:
— Não adianta dar uma de avestruz, enfiar a cabeça na terra e ignorar que os jovens usam drogas. Podemos dizer, como o ministro Barroso, que a flexibilização da legislação reduzirá o número de presos.
Polêmica ainda maior com a cocaína
E se a legalização da maconha já divide opiniões, a possibilidade de estender a iniciativa para a cocaína, como apontada pelo ministro Barroso, e outras drogas provoca ainda mais polêmica.
— É preciso encarar que, se a droga é perigosa, ela deve estar sob controle e regulamentada — defende Renato Cinco. — Muitos aceitam a ideia da legalização da maconha porque é uma droga mais leve, mas, na verdade, quanto mais pesada é a droga, mais perigosa e necessário é que ela esteja sob controle e regulamentação.
Jaber, porém, vê nisso um risco ainda maior para a saúde pública.
— A legalização da cocaína é uma ideia quase absurda — afirma. — Não há uma experiência sequer de liberação da cocaína no mundo e ela é realmente uma droga bastante venenosa para a saúde mental e geral. A cocaína tem um poder intoxicante muito forte e destrói as células do organismo, em especial do coração e cérebro, além de provocar mudanças abruptas do comportamento, aumentando a violência e agressividade do indivíduo. O mercado das drogas é um capitalista voraz, criminoso e assassino, não só o ilegal, mas o legal também, então a legalização das drogas só vai é abrir uma frente enorme neste sentido.