Vamos imaginar que um médico foi chamado para atender uma criança que, desobedecendo as ordens da mãe, foi tomar banho em um rio de águas geladas e por isso pegou uma pneumonia. O médico encontra uma família muito preocupada porque o garoto está com febre alta, muita dor nas costas e dor intensa, além de reclamar bastante da desobediência que provocou tudo isso. Como o único tratamento eficaz é aquele que atua na doença primária, que no caso é uma bactéria que penetrou nos pulmões do doente, o médico receita antibióticos.
Fácil, não é? Mas se o médico desconhecesse a doença primária na pneumonia e a confundisse com os sintomas, talvez receitasse um xarope para a tosse e um analgésico para a dor, ou então, quem sabe talvez encaminhasse a criança para um psicólogo, para saber porque ela é desobediente.
Por isso, tratamentos que funcionam são aqueles que atuam na doença primária e essa sempre foi a grande dificuldade da medicina em relação ao alcoolismo, doença crônica, progressiva e de evolução lenta e fatal. Ao ver o doente pela primeira vez, frequentemente já em estado mais avançado, o médico ouve do alcoólico e de seus familiares uma série de queixas ligadas à um adoecimento físico importante, a um distúrbio de comportamento que pode beirar à loucura e uma mais ou menos acentuada perda de valores ético-morais, sem que se saiba direito o que começou primeiro e muito menos onde está a doença básica, aquela que deve ser o alvo do tratamento.
Até o final do século passado, quase todos admitiam que a origem do alcoolismo estava na esfera ético-moral: o alcoólico bebia porque era fraco de caráter, porque não dispunha de reservas morais para resistir ao “vício” ou simplesmente porque não tinha vergonha na cara.
Estando a doença primária colocada nesta área, o tratamento limitava-se a umas lições de moral, alguns bons conselhos ou exortações de cunho religioso, sendo os resultados obtidos, bastante precários.
Depois da publicação das obras de Freud, muitos profissionais passaram a ver as coisas de modo diferente e começaram a situar a doença primária do alcoolismo na esfera psíquica. A origem do problema estaria em algum conflito na personalidade ou um trauma profundamente escondido no subconsciente e este distúrbio fazia o doente buscar anestesia no álcool. Visto desta forma, o tratamento mudava bastante: o paciente era levado a se analisar deitado num divã, na busca das razões que o levavam a beber descontroladamente e com a esperança de que se o descobrisse, voltaria a ter um consumo moderado do álcool. Variantes deste tratamento foram também os mais variados medicamentos de uso psiquiátrico, tudo sem que se obtivesse resultados melhores do que os anteriores.
Hoje em dia, há muita gente colocando a doença primária na esfera social. O doente é pobre, às vezes miserável, mora na favela, ganha salário mínimo, tem família numerosa e diante de tantas desgraças juntas, só pode mesmo tornar-se um alcoólico. Ele bebe para esquecer , para enganar a fome. Na realidade, neste caso, a doença primária seria a pobreza e o tratamento mais difícil, mas não impossível: vamos imaginar que ele ganhasse sozinho um prêmio de loteria e ficasse milionário, da noite para o dia. Estaria curado da falta de dinheiro e se isso fosse a origem do seu alcoolismo, passaria a beber muito pouco, provavelmente só champanhe francês, no seu novo apartamento à beira-mar. Muitos exemplos conhecidos, nos mostram que na prática, as coisas não são bem assim.
Neste ponto, vale a pena citar estatística do governo suíço, publicada em Genebra: 90% dos suíços bebem dez por cento das bebidas alcoólicas vendidas no país, mas apenas 10% da população bebe os restantes noventa por cento. Em outras palavras, em uma nação rica, sem os problemas sociais que enfrentamos no Brasil, existem os mesmos 10% de alcoólicos que nos demais países ocidentais, dos mais opulentos aos mais miseráveis.
Na realidade, a origem do alcoolismo, a doença primária, dificilmente pode ser achada na área psíquica, social, ou ético-moral. A esmagadora maioria dos pacientes adoecem primariamente pelo lado físico: começam a beber sem problemas, como a maioria das pessoas, mas por uma série de fenômenos particulares do seu organismo, como as enzimas que tem no fígado ou uma adaptação de seus neurônios ao álcool, acabam se tornando alcoólatras.
Estas enzimas existem no fígado para decompor e eliminar o álcool ingerido, transformando-o numa primeira etapa em um composto bastante tóxico, o acetaldeído, responsável pelas famosas ressacas. Existem pessoas que tem um fígado rico nestas enzimas e por isso rápido na decomposição do álcool, que fica pouco tempo na circulação e por isso também não tem tempo de fazer muito efeito: são pessoas que bebem bastante e se embriagam pouco, um processo que chamamos de tolerância ao álcool. São esses, citados na sociedade como pessoas que “sabem beber”, os candidatos a futuros alcoólicos, exatamente porque conseguem beber muito. Como também eliminam rapidamente os derivados tóxicos, no início da doença tem muito poucas ressacas, o que os estimula a voltar a beber. Já aqueles que se embriagam com um copo de cerveja e passam o dia seguinte com dor de cabeça e vômitos, não sendo tolerantes ao álcool, jamais vão conseguir beber a quantidade necessária para detonar a doença.
Ainda mais importante, é o que acontece no cérebro. Em algumas pessoas, o acetaldeído formado no fígado do bebedor, ao passar pelo sangue nas células nervosas, é capaz de se combinar com diversos neurotransmissores, como a dopamina e a serotonina, por exemplo, dando origem a um grupo de outras substâncias, denominadas tetrahidroisoquinolinas, abreviadamente conhecidas como TIQs.
Pois bem, macacos injetados com TIQs retirados de alcoólicos, em experiências feitas na Universidade da Carolina do Norte, desenvolveram enorme avidez por álcool, que passaram a beber em grande quantidade , até atingir estágios de consumo irreversível. Existem ratos , que por sua natureza rejeitam qualquer líquido que contenha álcool, mesmo pequenas quantidades, preferindo passar sede e até morrerem desidratados:injetados com TIQs, transformam-se em grandes bebedores e morrem de cirrose. Há muitas outras experiências com animais de laboratório, apresentando resultados semelhantes. O adoecimento primário nestes casos, fica claramente relacionado com a injeção de uma substância química, proveniente de alcoólicos humanos.
Hoje sabe-se que a neuroquímica do cérebro alcoólico não se resume a fabricação de TIQs, mas que ela é muito mais complexa. Existem também mudanças na membrana celular dos neurônios, nas trocas de sódio e potássio e muitas outras, de modo que pode-se dizer que na realidade, os neurônios de algumas pessoas que consomem álcool em quantidade, acabam por se adaptar a ele, tornando-se mais excitáveis. De início um pequeno número de neurônios muda desta forma, depois outros e mais outros – até que progressivamente predominam os neurônios “alcoólicos”, a doença se instalando aos poucos, ao longo do tempo.
Em outras palavras, a doença primária do alcoolismo situa-se no cérebro dos alcoólicos, não na sua mente. Nesse sentido, alcoolismo é doença incurável, porque a capacidade adquirida de reagir ao álcool de forma diferente à dos não alcoólicos fica marcada no organismo. Não há força de vontade ou reserva moral capaz de impedir que estes neurônios modificados reajam com excitação, na presença de álcool.
Isto explica também o que ocorre na abstinência, mesmo nas de curta duração, por exemplo uma noite de sono. Ao acordar, com os neurônios excitados , o alcoólico está nervoso, trêmulo, inquieto, ansioso, com pulso acelerado, tudo muito desagradável. Para que tudo passe, ele já sabe que basta beber: enquanto houver álcool no sangue, as coisas voltam ao normal, até que o ciclo recomeça.
Note-se que o alcoólico que busca desesperadamente um bar ou padaria abra às cinco horas da manhã, para tomar sua bebida, não está mais movido pelo prazer ou pela companhia dos amigos:não está também querendo embriagar-se, ele busca apenas alívio para uma situação perturbadora , que o impede ocasionalmente até de trabalhar, através do único remédio que ele conhece, muitas vezes já agora cheio de culpas e vergonhas. Usa manhas e artifícios para esconder dos outros a quantidade de álcool que bebe: começa a ter medo de estar em lugares e situações onde talvez não haja bebida. O álcool passa a ter cada vez mais um papel preponderante em sua vida, já que, para sentir-se normal, depende quimicamente dele. Com as várias negações, explicações e fantasias típicas da doença, surge um processo de comprometimento psíquico ou comportamental, a sobrepor-se ao físico já existente – é a dependência emocional. Na maioria das vezes, só aí é que ele passa a chamar a atenção como doente, apesar do início do processo ter ocorrido muitos anos atrás.
A medida que um maior número de neurônios ficam comprometidos, o alcoolismo evoluiu para uma terceira esfera de comprometimento, a dos valores éticos-morais ou espirituais, substituídos que são por um único interesse na vida: continuar bebendo.
Assim, desde a doença primária, a dependência química, passando pelo lado emocional e a perda de valores, passam-se muitos anos de progressivo adoecimento, o que obriga qualquer recuperação, para ser bem sucedida, a seguir a mesma ordem natural das coisas: primeiro o doente tem de começar pelo lado físico e parar de beber, nem que seja por 24 horas de cada vez, para que fique mais fácil. Depois, é preciso que reformule seu comportamento e atitudes, para depois readquirir seus valores.
Alcoólicos Anônimos é um poderoso agente de recuperação, exatamente porque segue a história natural do adoecimento. Primeiro, na fase inicial da abstinência, o alcoólico ainda muito confuso e fragilizado, encontra ajuda nas milhares de reuniões existentes no Brasil inteiro, identificando-se com os depoimentos e percebendo que não está mais sozinho.
Segundo, depois de estar com seu raciocínio mais lúcido e aceitando melhor sua doença, o AA oferece-lhe um programa individual de recuperação emocional e de relacionamento com o mundo exterior, através de uma escalada de 12 passos , em sequência. Finalmente, abstinente de álcool e reconciliado consigo mesmo e com o mundo, o alcoólico encontra antigos ou novos valores espirituais, como os que se alicerçam nas 12 tradições, especialmente os relacionados com o bem estar comum e o anonimato.
Tratando-se de doença crônica, o alcoolismo exige permanente ação de recuperação: trata-se de programa para toda a vida. Frequentemente, encontram-se recuperações apenas parciais, em que alcoólicos param apenas de beber e mais nada, recusando-se a fazer quaisquer mudanças nos seus comportamentos, atitudes e valores; embora abstinentes, elas estão ainda muito adoecidas emocional e espiritualmente. São pessoas que a comunidade de AA diz estarem em “porre seco”. Como a recuperação também é progressiva, estão também mais sujeitos a uma recaída.
A vigilância sobre o perigo da recaída deve ser permanente, já que é engano pensar-se que ela começa no primeiro gole. Na realidade, a recaída termina nele, uma vez que aí o processo é inverso:primeiro o doente perde valores espirituais, depois fica emocionalmente perturbado por distúrbios de comportamento, até que finalmente volta a beber. Há uma série de sintomas precedentes desta volta e muitos podem ser percebidos pelo próprio ou por pessoas que o cercam, desde que estejam vigilantes. A recaída emocional pode ser perfeitamente revertida, antes do doente estar com seu raciocínio crítico tão afetado, a ponto de achar que o álcool possa ser novamente solução para seus problemas.
Recuperação e recaída são como duas faces da mesma moeda, quem não está se recuperando, está recaindo e vice-versa. Está gangorra das emoções é normal e não deve assustar além da justa medida, acontecendo também com outros doentes crônicos, o diabético com sua dieta e etc.
No alcoolismo, importante é não deixar qualquer recaída evoluir a ponto de voltar a beber, porque aí entram em ação as poderosas forças da doença primária – a dependência química – e aí a situação fica novamente fora do controle do alcoólico.
FONTE: Dr. Alberto Duringer – Médico do Conselho Estadual de Entorpecentes e Ex-Diretor do Hospital Central da PMERJ
Aluno: Carlos Alberto Rocha
Curso de Formação de Terapeutas – CJJ/2017