fonte: Diário do Rio

Jorge Jaber – Epidemia de desinformação: diagnóstico e tratamento

O vertiginoso desenvolvimento dos meios de comunicação das últimas duas ou três décadas colocou as sociedades contemporâneas numa situação curiosa e perturbadora: a oferta rápida e abundante – talvez excessiva – de informações provocou, paradoxalmente, uma epidemia de desinformação. Soterrados por uma avalanche de irrelevâncias ou mesmo de mentiras, fatos e dados importantes acabam passando despercebidos ou questionados de forma quase infantil, num cenário em que o debate equilibrado dá lugar ao conflito, e em que o desrespeito às normas consagradas se generaliza.

O fenômeno, principalmente em regiões com carências nas áreas de saúde e educação, vem não somente apresentando novos desafios, mas também trazendo de volta alguns que pareciam superados. Um bom exemplo é o resultado de nossa última campanha de vacinação contra a poliomielite, que até junho tinha atingido apenas 31% das crianças com até cinco anos de idade, abrindo um flanco perigoso para o retorno de uma doença que, mesmo erradicada no Brasil há 30 anos, segue endêmica em outros países. Pronta, portanto, para atacar ao menor sinal de descuido com a imunização.

Uma das causas do insucesso é, segundo pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público, a desinformação. O estudo, com 3.000 pessoas, revela que 21% delas veem como alto o risco de reação aos imunizantes, e já deixaram de vacinar os filhos depois de receber notícias falsas nas redes sociais. O quadro poderia ser mais grave: cerca de 27% dos entrevistados dizem confiar muito no que leem sobre o assunto nestes espaços virtuais. Mesmo que 70% confiem na segurança e eficácia das vacinas e 90% as considerem importantes, esses números ligam uma luz de alerta.

Nesta enxurrada de informações, notícias relevantes muitas vezes deixam de receber o merecido destaque, e neste ponto a última semana de junho foi exemplar. Na terça-feira, o Supremo Tribunal Federal descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, desde que limitado a 40 gramas, e no dia seguinte a ONU divulgou seu Relatório Mundial sobre Drogas, que todos os anos analisa o uso, produção, tráfico e políticas de controle dos entorpecentes no planeta. A coincidência não se limitou à data: o estudo da entidade tem um longo trecho dedicado, justamente, à cannabis.

Ele mostra que dos cerca de 292 milhões de usuários de alguma substância psicoativa em 2022, quase 230 milhões consumiram maconha, 5% a mais do que em 2021. O documento também aborda a liberalização do uso recreativo da planta em países como Alemanha e Estados Unidos, onde houve uma alta nas hospitalizações, transtornos mentais e tentativas de suicídio ligados a ela. Dados, entre tantos outros, muito úteis na urgente discussão sobre o tema que devemos travar, mas que acabam obscurecidos, quase desprezados, num triste desperdício de conhecimentos confiáveis.

As 10 propostas da Declaração de Oviedo, lançada em janeiro pelo Projeto Hombre – organização espanhola de apoio a dependentes químicos –, também passaram quase em branco por aqui. O texto, em suma, vê a prevenção como uma ciência, pilar de qualquer estratégia contra as drogas, e sugere, entre outros pontos, a aplicação de 25% dos recursos de todos os países para a área em medidas preventivas. Com divulgação mais ampla e devidamente adaptadas ao nosso contexto, essas e outras ideias poderiam ajudar a definir estratégias contra esse problema, que só tende a crescer.

Essa falta ou excesso de certas informações, muitas equivocadas ou mesmo mentirosas, nos joga num quadro contínuo de dúvida e incerteza sobre tudo e todos. Uma sensação de angústia permanente, em que o individualismo aparece como única e óbvia reação, levando a um muitas vezes insensato questionamento de padrões de conduta e da própria lei. Comportamentos que se naturalizaram no trânsito, nos estádios – dentro e fora dos gramados, por sinal –, nas relações afetivas e profissionais, enfim, em nosso cotidiano.

Neste panorama, nenhuma sociedade pode prosperar e evoluir, e a resposta para esta questão, se é que existe, não é simples, mas certamente exige um esforço coletivo. Ela passa, por exemplo, pela atuação ainda mais criteriosa dos veículos de imprensa, abrindo espaço para ideias e debates ponderados. É preciso, também, que os detentores de algum tipo de conhecimento se disponham a compartilhá-lo de forma clara e objetiva, e, enfim, que os leitores confirmem a veracidade do que leem ou escutam. A informação é uma ferramenta valiosa demais para ser vista como mero passatempo.

*Jorge Jaber é psiquiatra, membro fundador e associado da International Society of Addiction Medicine, associado da New York Academy Of Sciences, da American Psychiatric Associations – APA e da World Federation Against Drugs – WFAD

Confira coluna do Dr. Jorge Jaber no Diário do Rio