fonte: Diário do Rio
No dia 19/08, o governador Cláudio Castro (PL) publicou no Diário Oficial um decreto que regulamenta a exploração de modalidades lotéricas por meio de video lottery terminals (VLTs), totens, terminais de apostas e máquinas smartPOS no estado do Rio de Janeiro.
Além das lotéricas e estabelecimentos credenciados, o decreto autoriza a operação em lojas VLTs / Sports Bar – espaços temáticos voltados para apostas, com transmissão de eventos esportivos e experiência de entretenimento.
Os “estabelecimentos não exclusivos” — como bares, restaurantes e mercados — também poderão instalar os equipamentos, desde que homologados e conectados ao sistema da Loterj.
A decisão foi alvo de críticas por parte de especialistas. Especializada em tratamento para dependentes químicos e jogadores compulsivos, a clínica comandada pelo psiquiatra Jorge Jaber observou um aumento de cerca de 500% nos atendimentos para pessoas que tiveram problemas com jogos. O número de internações cresceu 100%. Isso nos últimos três anos, período de crescimento dos sites de aposta no Brasil.
Muitos desses casos são por conta das apostas feitas pelo celular. No entanto, segundo o Dr Jaber, as máquinas liberadas pelo decreto do Governo Estadual do Rio de Janeiro têm o mesmo efeito.
“Não há diferença significativa: o mecanismo é o mesmo. O jogo, seja em uma máquina física ou no celular, ativa no cérebro circuitos de recompensa ligados à liberação de dopamina, neurotransmissor associado à sensação de prazer. A cada rodada, o jogador espera a vitória e, mesmo quando perde, o cérebro fica condicionado a buscar novamente aquela sensação momentânea de bem-estar. É o que chamamos de reforço intermitente: um sistema que mantém a pessoa presa ao comportamento. Esse mecanismo é semelhante ao que ocorre com drogas e outras formas de dependência: a pessoa perde a noção do tempo e da frequência, sente dificuldade de parar e passa a organizar a vida em função da próxima jogada. A diferença está apenas no meio (físico ou digital), mas o efeito sobre o cérebro e o risco de desenvolver dependência são os mesmos“, disse Jorge Jaber.
Na sequência, Jaber complementa dizendo que a liberação dessas máquinas pode sim aumentar o número de jogadores compulsivos.
“Sem dúvida. A lógica dos jogos de azar é a mesma em qualquer lugar do mundo: quanto maior a facilidade de acesso, maior a probabilidade de que pessoas vulneráveis adoeçam. A sociedade brasileira, historicamente, cultivou uma cultura de esforço e poupança como caminho para a realização pessoal. A legalização dos jogos, quando não acompanhada de medidas protetivas, reforça o mito da “riqueza imediata”, a ilusão de que é possível mudar de vida de um dia para o outro com uma aposta. Isso tem enorme apelo, sobretudo em tempos de crise, e acaba funcionando como gatilho para transtornos mentais e comportamentais. Estudos mostram que, assim como acontece com o álcool, a maioria das pessoas não terá grandes problemas; porém, cerca de 20% desenvolverão dependência. É essa minoria que se tornará um desafio de saúde pública. Por isso, qualquer decreto deveria prever, desde a origem, que parte dos recursos arrecadados pelo setor seja destinada obrigatoriamente à prevenção e ao tratamento da dependência. Caso contrário, o custo recairá sobre o sistema de saúde e sobre as famílias“, garantiu o psiquiatra.
Para Fernando Flores, jornalista, estudante de psicologia e pesquisador do tema, o decreto de Cláudio Castro vai na contramão da ciência e da saúde pública.
“Diante de um cenário amplamente divulgado de uma pandemia de transtorno de jogo patológico nítida e já medida, que também é provada com números do Banco Central, que fala dos bilhões que estão sendo gastos com com os jogos, além do CEO do grupo Açaí explicando que parte do dinheiro que ia para o varejo está indo para o vício em apostas, esse decreto vai na contramão da ciência e da saúde pública. Tem um estudo da comissão de saúde pública da LANCET, principal publicação científica do mundo, que faz um alerta mundial sobre o avanço dessa pandemia de transtorno do jogo patológico. Aí vem o DSM, que é o manual estatístico de transtorno mental da sociedade americana de psiquiatria, é a bíblia do psiquiatra e do psicólogo. Dentro do DSM tem um capítulo chamado de transtornos adictivos, onde estão todos os transtornos de vícios por substância. O jogo está lá, junto com vícios como cocaína, crack. Assim, você entende um pouco da gravidade do transtorno do jogo. O que a gente espera do poder público é que de alguma maneira se combata isso, né? Com campanhas, com com proposições de leis, com propaganda. E o que a gente vê é exatamente ao contrário é é o governador do estado eh distribuindo máquinas de jogos”, pontuou Flores.
O Governo do Estado do Rio de Janeiro alega que as máquinas trarão arrecadação e geração de empregos. A questão economica também é alvo de críticas. “O principal risco ao consumidor é quanto aos danos de sua saúde e as consequências do super endividamento. Não há a menor dúvida que essa é uma das medidas mais absurdas já vistas nos últimos anos. Estamos jogando milhões de pessoas no vício, destruindo famílias e agravando uma epidemia silenciosa no nosso país”, frisou João Vitor Pires, secretário de proteção e defesa do consumidor da cidade do Rio de Janeiro.
Prefeito do Rio é contra o decreto
Dois dias depois da publicação do decreto estadual de Castro, o prefeito da cidade do Rio, Eduardo Paes, declarou que não permitirá a implementação de máquinas de apostas e Video Lottery Terminals (VLTs) na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com Paes, estabelecimentos que aderirem à prática não terão alvará de funcionamento concedido pela Prefeitura.
“Eu acredito que a decisão de sair liberando essas máquinas de jogos por aí através de um decreto, sem respaldo dos legisladores, sem debater o tema de maneira adequada, é uma medida no mínimo equivocada. A gente sabe que esse assunto, que deve envolver muita responsabilidade, diálogo, cuidado, porque afeta diretamente famílias, pode levar ao vício, se não for muito bem regulamentado pode aprofundar uma questão de saúde pública, uma questão social. Na Cidade do Rio a gente vai adotar cautela, vamos definir que, por ora, os estabelecimentos comerciais sigam sem poder expedir alvará de funcionamento pela prefeitura, caso tenham máquinas de jogos”, assegurou o prefeito.
O que o Governo do Estado diz sobre o decreto
Através de comunicados oficiais, o governo e Loterj têm pressa informaram que a expectativa é que o sistema comece a funcionar ainda este ano. Para ter a licença de exploração por 5 anos, a loteria terá que pagar R$ 5 milhões ao estado, além de repassar 5% da receita.
Ademais, foi informado que a publicidade dos produtos deverá seguir regras, com limites para não atingir públicos vulneráveis. A Loterj também será responsável por campanhas educativas sobre o jogo responsável.
O texto estabelece, ainda, que a operação será feita pela Loteria do Estado do Rio (Loterj), com todas as máquinas interligadas ao sistema. Impõe também uma série de exigências, como a que os pagamentos sejam feitos só por PIX, para identificação do usuário.
Pagamentos exclusivos via PIX: todas as transações terão de ser feitas por meio do sistema, vinculado ao CPF (no caso de brasileiros) ou passaporte (para estrangeiros).
Proibição de dinheiro em espécie e cartões: não será permitido o uso de cédulas, cartões de crédito ou débito, nem boleto bancário.
Autenticação multifatorial: login com QR code, biometria facial e mais um fator de verificação.
Cadastro obrigatório de jogadores (KYC): integração com bases públicas e privadas para verificar identidade, bloquear menores de idade e prevenir lavagem de dinheiro e jogo compulsivo.
Registro em log: todos os acessos e interações ficarão gravados em sistema auditável, disponível em tempo real para a Loterj.
Para o psiquiatra Jorge Jaber, “uma decisão dessa natureza precisa necessariamente estar acompanhada de regulamentação severa. Em um Estado Democrático de Direito, atividades econômicas devem ter espaço, mas quando lidamos com algo que comprovadamente pode gerar dependência e sofrimento, a regulação precisa ser firme, transparente e baseada em evidências. Ao expandir a oferta de jogos de azar, o Estado também expande a exposição da população ao risco de adoecimento. É indispensável prever limites claros de publicidade, mecanismos de monitoramento, fiscalização rigorosa e uma rede de atendimento público preparada para acolher quem desenvolver dependência. Além disso, o Estado deve investir em campanhas de esclarecimento sobre os riscos, com atenção especial ao ambiente escolar. Ignorar esse aspecto é abrir espaço para o agravamento de um sério problema de saúde pública, um retrocesso travestido de política econômica”.