fonte: NewMag
A cena poderia ter saído de um filme policial. Na madrugada, oito homens, encapuzados e armados com fuzis, invadem o prédio, rendem com extrema facilidade os seguranças e seguem em frente, ameaçando os que por acaso ou azar atravessassem seu caminho. Não, não eram bandidos tentando tirar um comparsa da prisão, nem assaltantes de banco: o palco desse roteiro de terror foi o Hospital Pedro II, um dos mais movimentados do Rio, há cerca de 15 dias, e os protagonistas, assassinos à caça de um desafeto, que só se livrou da execução porque já tinha sido transferido para outro local.
Não foi um caso isolado. Semana passada, um tiroteio próximo ao Hospital do Andaraí deixou duas pessoas feridas e uma morta, além de funcionários e pacientes em pânico. Há quatro meses, uma pediatra teve o rosto ferido a unha pela mãe de um paciente no Hospital Municipal Albert Schweitzer, e, no final do ano passado, uma médica morreu depois de atingida por uma bala no Hospital Naval Marcílio Dias. A insegurança faz parte da rotina: só em 2025, houve quase 700 interrupções no trabalho de Clínicas da Família e postos de saúde cariocas por conta da violência.
O panorama não muda Brasil afora. De acordo com o Conselho Federal de Medicina, em 2024 foram registrados 4.562 boletins de ocorrência – média de 12 por dia – relativos a agressões contra médicos no país, quase 70% a mais do que há 10 anos. Os enfermeiros, que geralmente atuam na ponta do sistema, também são vítimas frequentes da insatisfação de pacientes e seus acompanhantes com o atendimento: em São Paulo, por exemplo, mais de 80% deles já foram fisicamente agredidos; metade destes, mais de uma vez. Ofensas e ameaças também fazem parte da rotina da categoria.
Nesse cenário, os impactos sobre a saúde mental dos profissionais da área são inevitáveis. O cotidiano de medo os deixa em hiperalerta constante, o que pode detonar transtornos de ansiedade, fobias, insônia e estresse pós-traumático, e o sentimento de impotência e desvalorização pessoal diante das condições de trabalho abre caminho para depressão e abuso de álcool, tabaco e outras substâncias como forma de fuga desse contexto desumano. A Síndrome de Burnout, que gera exaustão e sentimento de incompetência, é outro distúrbio muito comum entre esses trabalhadores.
Vale lembrar que médicos e enfermeiros, mesmo em condições adequadas de trabalho, apresentam taxas de suicídio mais elevadas do que o restante da população, como também vemos em países mais desenvolvidos. Isso ocorre pela combinação de fatores como distúrbios emocionais, contato com a morte e uso de drogas. Não é difícil imaginar que no Brasil, expostos permanentemente ao risco, com carga horária exaustiva e remuneração nem sempre adequada, todos aqueles que se dedicam à indispensável tarefa de salvar vidas estejam muito perto de, infelizmente, tirar a própria.
A questão ultrapassa os aspectos individuais. Hospitais e unidades de saúde em áreas de risco registram, por razões óbvias, altos índices de absenteísmo e afastamentos por licença médica, o que aumenta o esforço dos que ficam. Desmotivados e amedrontados, muitos profissionais mal veem a hora de se transferir para um local mais seguro, abandonando as regiões mais carentes e vulneráveis, criando os chamados “vazios assistenciais”. Com isso, piora a qualidade do atendimento, o que aumenta a insatisfação e, portanto, o risco de novas agressões, num círculo vicioso difícil de romper.
O problema não é exclusivo dos usuários do sistema público de saúde. A falta de atendimento adequado em determinadas regiões exacerba a revolta social e estimula o clima de violência já latente em nossa sociedade, que não se limita à porta dos hospitais. Os custos indiretos – licenças médicas, reposição de profissionais, indenizações, segurança das unidades e outros – também são pagos por todos. Há, também, uma perda de saberes: quantos médicos, cuja formação custou tempo e dinheiro, abandonaram a carreira nos últimos anos? Tudo isso deve ser colocado na balança.
Estamos diante de uma ameaça real a nosso sistema público de saúde, que afetará até os que não o utilizam diretamente. Seus profissionais merecem mais atenção e respeito, com apoio psicológico antes e depois de agressões, treinamento para lidar com o público e manejar conflitos, mais segurança no ambiente de trabalho e campanhas de valorização social, entre outras medidas. O SUS é uma conquista de todos os brasileiros, um instrumento vital para nosso desenvolvimento enquanto nação saudável e inclusiva, e os trabalhadores que se dedicam a ele são peças fundamentais nesse processo.
Jorge Jaber é psiquiatra e grande benfeitor da Academia Nacional de Medicina
Os vazios assistenciais