fonte: Diário do Rio
A cena não é nova, e eventualmente volta ao noticiário: grupos de ciclistas em passeios noturnos, com motociclistas no papel de batedores. À primeira vista, uma agradável forma de mexer o corpo, criar laços sociais e até de ocupar o espaço público, com benefícios para a saúde física e mental. As simpáticas excursões, no entanto, merecem um olhar mais atento, pois se inserem na grave questão do trânsito no Brasil.
Antes de entrar no assunto, vale deixar claro que não se trata, aqui, de um ataque às “magrelas”. Pelo contrário: pedalar, além de divertido, é um excelente exercício, eficaz na prevenção de cardiopatias e diabetes e no controle da pressão arterial, obesidade e colesterol, além de reduzir o estresse e melhorar o humor. Nada contra, portanto, o ciclismo em si, recomendado pela própria Organização Mundial da Saúde em seu plano de ação global.
É preciso, porém, destacar certos pontos. Esses grupos nem sempre primam pelo respeito às regras de trânsito, avançando sinais e circulando em velocidade e locais indevidos, não raro sob o olhar inerte das autoridades. Um comportamento que despreza, além das leis, algumas das mais básicas noções de civilidade, num estranho salve-se quem puder em que as bicicletas ameaçam tanto os mais fortes – os carros – quanto os mais fracos – os pedestres. Estes, por sinal, também intimidados pelas motos que, para proteger os ciclistas, acabam acompanhando-os em suas infrações e aumentando a insegurança coletiva.
Parece estranho constatar que, longe das pistas, a maioria dos protagonistas deste balé perigoso é incapaz de qualquer grosseria ou transgressão. A ciência, como sempre, nos socorre. A endorfina liberada pela atividade física – e pelo risco – produz uma euforia que o ciclista procura sentir novamente, mesmo que à custa de sua própria segurança. Em grupo, influenciado pelo efeito manada, esta busca pode levá-lo a ações das quais só mais tarde se conscientiza.
Isso não justifica, claro, qualquer desrespeito à lei, muito menos quando envolvem a segurança de terceiros, como as bicicletas. O aumento da frota em duas rodas no Brasil já mostra efeitos: entre 2020 e 2021, o número de acidentes graves com ciclistas pulou de 14.416 para 16.070, e o de vítimas fatais foi de 1.352 para 1.381. Para efeito de comparação, na União Europeia – com população duas vezes superior à nossa – houve pouco mais de duas mil mortes sobre duas rodas em 2019.
O cenário sombrio não é exclusividade dos ciclistas. Entre 2010 e 2019, perdemos cerca de 390 mil vidas no trânsito, 13,5% a mais que na década anterior. Em 2022, houve um ligeiro declínio, o que não nos tirou de um triste terceiro lugar neste ranking, atrás apenas da China e Índia. O mau estado de boa parte de nossas ruas, rodovias e veículos é uma das causas, mas a principal é a desatenção e imprudência – não raro turbinadas pelo álcool e drogas –, responsáveis por mais da metade dos acidentes.
Analisados a fundo, esses dados mostram que a guerra no asfalto atinge mais a população entre 20 e 59 anos. Pessoas no auge da produtividade, em plenas condições físicas e mentais, obrigadas a interromper, às vezes permanentemente, suas trajetórias, num enorme prejuízo para a economia brasileira. O custo estimado desses acidentes, somando internações, licenças médicas, aposentadorias precoces e outros gastos chega a R$ 20 bilhões anuais. Pagos, por sinal, por todos nós.
É possível mudar este quadro. Campanhas como o Maio Amarelo são louváveis, mas a conscientização deve ser permanente. Os cidadãos têm direito de exigir melhorias na estrutura viária e de fiscalização da frota, mas também têm deveres, que passam pela direção responsável e respeito às leis – e, principalmente, ao próximo. Com uma mobilização geral da sociedade, podemos interromper esta tragédia diária sobre rodas.
*Jorge Jaber, psiquiatra, membro fundador e associado da International Society of Addiction Medicine, associado da New York Academy Of Sciences, da American Psychiatric Associations – APA e da World Federation Against Drugs – WFAD