fonte: Diário do Rio

por Dr. Jorge Jaber, psiquiatra, membro fundador e associado da International Society of Addiction Medicine, associado da New York Academy Of Sciences

Quase dois meses depois do início das enchentes no Rio Grande do Sul, seguimos com os olhos voltados para o estado. Diante dos mortos e desabrigados, das imagens de imóveis e infraestrutura urbana em escombros e do baque na economia, é natural que as primeiras discussões sobre a tragédia se concentrem nos dramas pessoais e no trabalho de reconstrução. Em breve, porém, encararemos uma questão mais ampla: os reflexos sobre a saúde mental de nossa população como um todo.

Sim, um episódio como este exporá não apenas o bravo povo gaúcho, mas todos os brasileiros, ao transtorno de estresse pós-traumático. Ele surge depois de experiências perturbadoras, vividas in loco ou até à distância, a partir de cenas e relatos de forte efeito emocional. Devemos ficar atentos a sintomas de ansiedade, angústia, depressão e abuso de álcool e outras substâncias: mesmo não ocorrendo logo após a catástrofe, as causas podem estar ligadas a ela. Por outro lado, a onda de solidariedade que o caso gerou oferece um mecanismo apaziguador do transtorno psiquiátrico, ao despertar um comportamento que parecia andar em falta entre nós: a empatia.

As imagens de uma catástrofe climática têm, claro, efeito mais intenso em pessoas que vivem em locais já em processo de degradação. Elas despertam a consciência de que nosso lugar no mundo, que conhecemos e amamos, está ameaçado, provocando uma sensação de inquietude e melancolia que o filósofo Glenn Albrecht, professor de Sustentabilidade na Universidade de Murdoch, descreveu como “solastalgia”. Uma engenhosa combinação do termo latino solacium (conforto) com o sufixo de raiz grega algia (dor, sofrimento, pesar).

Seria, portanto, a dor pela perda iminente do conforto de um lugar acolhedor e querido, num contexto de impotência e luto muito comum em comunidades que dependem diretamente do ambiente natural para sua sobrevivência e bem-estar, mas não somente nelas. Os moradores de grandes cidades também podem vivenciar essa angústia e sofrimento psicológico, estando suscetíveis, portanto, ao mesmo quadro de ansiedade e uso excessivo ou indevido de substâncias químicas – lícitas ou não –, gatilhos para o surgimento ou evolução de diversos distúrbios mentais.

A manifestação desses transtornos, como vimos, nem sempre é imediata: eles podem ocorrer em até 10 anos, de acordo com a predisposição dos afetados a enfermidades mentais e o nível de sua exposição à tragédia. Isso inclui os profissionais e voluntários envolvidos no desgastante resgate de pessoas e animais. Apesar da louvável dedicação, nem todos têm a resiliência suficiente para situações extremas, e o ideal é aproveitá-los em tarefas mais amenas. Essas pessoas também precisarão de forte apoio psicológico para amenizar a dor decorrente de um evento dessa magnitude.

São feridas não apenas permanentes, mas também transmitidas para as próximas gerações, diz o neurocientista Eric Kandel, ganhador do Nobel de Medicina por seus estudos sobre a memória e aprendizado. Ele afirma que traumas severos podem provocar as chamadas mudanças epigenéticas, que, mesmo sem mudar a sequência subjacente do DNA, alteram a expressão dos genes. Esse processo neurológico, segundo ele, tem influência sobre o comportamento e a resposta ao estresse tanto dos diretamente atingidos pelo episódio traumático quanto de seus descendentes.

Estamos, portanto, diante de um problema que ultrapassa a reconstrução da infraestrutura, reerguimento econômico e atenção às demandas imediatas da população local. As urgentes medidas de prevenção devem, claro, ter foco no indispensável cuidado com o meio ambiente, mas precisam incluir o fortalecimento de nossa rede de serviços públicos de saúde mental. Isso interessa a toda a sociedade, até porque, infelizmente, nada que indica que essa seja a última tragédia do gênero.

Clínica Jorge Jaber no Diário do Rio