fonte: NewMag
Antes tarde do que nunca. Impulsionado pelas estarrecedoras denúncias do influenciador Felca sobre a “adultização”– termo criado por ele – de menores nas redes sociais, a discussão sobre os incontáveis riscos do ambiente digital voltou à baila nas últimas semanas, provocando reações firmes de toda a sociedade e promessa de medidas contra esse inaceitável – e, infelizmente, lucrativo – movimento criminoso. Que, vale destacar, se repete diariamente em todo o mundo, muitas vezes contando com a desatenção, falta de tempo ou mesmo o simples desconhecimento de pais e responsáveis sobre o assunto.
O neologismo de Felca descreve a exibição – lamentavelmente comum nas redes – de crianças se comportando como adultos, geralmente em contextos inadequados à idade, inclusive com cunho sexual. Uma prática, triste dizer, não raro estimulada pelos próprios pais, interessados na “monetização”, ou seja, a recompensa financeira por vídeos visualizados. Em português claro, quanto mais pessoas assistem às imagens do filho em situações vexatórias, maior o lucro dos adultos que, pelo menos teoricamente, teriam a obrigação – inclusive segundo a lei – de zelar por sua integridade física e emocional.
O influenciador toca em outro ponto-chave: o chamado “algoritmo P”, um mecanismo que seria usado pelas próprias redes para impulsionar a difusão de conteúdos que exploram a erotização da infância, facilitando sua entrega para públicos pedófilos. Isso estimula o fortalecimento de uma cultura da sexualização, nudez e pornografia infantil, movimentando uma grande rede de negócios não apenas imoral, mas também ilícita: embora a pedofilia seja considerada um transtorno psiquiátrico, as leis brasileiras preveem punição para as condutas ligadas à exploração sexual de crianças e adolescentes.
A rigor, a denúncia de Felca não traz grandes novidades, pois esse cenário é conhecido há anos. O que ele acrescentou ao debate, de forma didática e ao mesmo tempo impactante, foi a demonstração, quase passo a passo, do funcionamento dessa engrenagem perversa, além de apontar para alguns astros do universo virtual que estariam envolvidos com a questão. Pessoas, claro, com todo o direito à defesa e ao devido processo legal, mas cuja atuação passou a ser investigada e, no mínimo, questionada, o que talvez ajude a evitar que outros casos semelhantes venham a ocorrer.
O influenciador – que, coerentemente, abriu mão do lucro sobre o vídeo, prometendo doá-lo a instituições que atuam contra o problema – acabou ajudando a tirar da gaveta do Congresso Nacional a discussão do Projeto de Lei 2.628/2022, que prevê normas ainda mais severas contra o abuso e a exploração sexual infantojuvenil nas plataformas digitais e oferece novas propostas para prevenir, identificar e coibir esses crimes. Já aprovado pelo Senado, o PL aguardava a análise da Câmara dos Deputados, e, na última quarta-feira, foi aprovado sem maiores dificuldades.
Isso representará um enorme passo na proteção aos jovens, com reflexos em outro tema preocupante: a incidência de transtornos mentais entre eles. Segundo o Ministério da Saúde, o número de atendimentos no Sistema Único de Saúde a casos de ansiedade em pessoas de 10 a 14 anos cresceu 1.575% em uma década. Entre os 15 e 19 anos, o aumento foi de 4.423%, e outros distúrbios psíquicos também estão em alta. Evidentemente, nem todos os casos têm origem no abuso nas redes, mas não se pode desprezar o impacto desse absurdo no equilíbrio emocional dessa faixa etária.
Essa percepção é compartilhada por setores representativos da saúde. Em nota recente, a Sociedade Brasileira de Pediatria revela preocupação com os “riscos graves do ambiente digital” à nossa infância e adolescência, alertando que “essas práticas criminosas continuam a destruir vidas, marcar trajetórias e violar, de forma irreversível, a integridade física, emocional e moral das vítimas”. E completa: “por trás de cada denúncia, há uma criança ou adolescente cuja dignidade foi violada. Por trás de cada número, há a história de uma família e de um trauma que jamais deveria ter acontecido”.
A necessidade de aumentar o controle sobre as redes parece clara, mas não podemos esperar inertes a solução. Pais, parentes, educadores, enfim, todos que atuam na formação das crianças podem ajudar a preservá-las do risco digital, o que envolve tanto repressão quanto esclarecimento. É preciso, sem medo de parecer rigoroso, acompanhar o que elas fazem diante da tela. Ao mesmo tempo, devemos orientá-las sobre o tema, mostrando que há diversão fora da bolha virtual. Participar ativamente da educação e da vida dos filhos é a melhor forma de impedir que um estranho mal-intencionado o faça.
Jorge Jaber, psiquiatra e grande benfeitor da Academia Nacional de Medicina