Aluna: Adair Coelho
O padrão do consumo de drogas tem mudado constantemente e de uma forma dramática nos últimos vinte anos no Brasil. Até o começo dos anos oitenta praticamente não tínhamos uso de cocaína, pois o acesso desta droga era restrito às pessoas ou muito ricas, ou com ligações muito especiais no mundo das artes e negócios. Esta situação mudou rápida e substancialmente por vários fatores. Em primeiro lugar passou-se a plantar maiores quantidades de coca nos países
andinos, visando o mercado americano. Em segundo, os traficantes passaram a utilizar a mesma rede de distribuição que já existia para a maconha e portanto, com maiores possibilidades de atingir um maior número de consumidores. Em terceiro lugar e relacionado com os fatores anteriores, o preço da cocaína caiu muito. Em quarto lugar, no caso especial do Brasil viramos um país importante na rota do tráfico e por isto, uma parte substancial da droga acaba transbordando para o nosso mercado interno.
Esses fatores contribuiram para a grande mudança do padrão de consumo das drogas nos anos oitenta e começo dos anos noventa. Foi quando aumentou extraordinariamente o consumo de cocaína e as complicações do seu uso. No começo houve um predomínio do padrão de uso da cocaína aspirada, mas em seguida um grande número de usuários passou a injetar-se, o que ocasionou uma das maiores tragédias no campo das drogas no Brasil nas últimas décadas. Milhares de usuários acabaram ficando infectados pelo HIV, a maior parte deles já morreu ou acabou infectando suas parceiras e filhos.
A política de drogas governamental em nenhum momento acompanhou esses mudanças no padrão de consumo. Até hoje não temos uma política de distribuição de agulhas e seringas para os usuários de drogas injetáveis muito embora todos os países que adotaram essa forma de prevenção tenham colhido frutos muito bons. Por exemplo, no Brasil cerca de 50% dos usuários de drogas endovenosas são HIV positivos constrastando dramaticamente com a Inglaterra onde somente 1% são infectados. A grande diferença é que, desde 1984 quando do surgimento dos primeiros casos de infecção pelo HIV em usuários de drogas ingleses, passou-se a implementar uma política vigorosa de prevenção com esta população. O resultado foi que esta política salvou a vida de milhares de pessoas.
Com o aparecimento do consumo do crack no começo dos anos noventa, mais uma vez constatamos o total despreparo das políticas públicas de minimizar o dano de uma nova forma de uso de drogas. Mesmo após seis anos depois do aparecimento do crack em São Paulo ainda não temos uma política de atendimento para esses pacientes. Nos países desenvolvidos fala-se que a política oficial está sempres dois passos atrás das mudanças do padrão de consumo de drogas. No Brasil podemos falar que ficamos paralizados com essas novas forma de consumo e a implementação de novas políticas de drogas só ocorrem muito tardiamente após muito dano já ter ocorrido.
A grande pergunta que devemos nos fazer no momento é qual seria a próxima mudança no padrão de consumo de drogas que inevitavelmente se instalará no Brasil ? O que será que poderíamos fazer para não repetirmos o sentimento de paralisia com que temos sentido durante os últimos anos em relação às políticas de drogas ? Como prevenir os eventuais danos dessas novas drogas que inevitavelmente surgirão ?
Vários fatores podem estar contribuindo para que a heroína seja a próxima droga que produzirá danos sociais no país. Em primeiro lugar, existe uma tendência à internacionalização dessa droga, dela expandir-se para além dos mercados tradicionais europeus norte-americanos e asiáticos. Em segundo lugar existem evidências de que começou-se a plantar ópio em vários países andinos. Em terceiro lugar, muito provavelmente a mesma rota de distribuição da cocaína será usada para a heroína, e portanto com muitas chances de transbordar para o mercado brasileiro.
Em São Paulo já há muito tempo sabia-se que uma parte da comunidade oriental que habita uma região central da cidade consumia heroína, muito embora fosse um consumo bastante localizado e somente em indivíduos dessa comunidade.
Uma outra fonte de eventuais pacientes consumidores de heroína que chegavam aos serviços de usuários de drogas ou nos consultórios particulares eram de indivíduos que haviam ido para a Europa ou EUA e ficado dependentes de heroína nesses países.
O primeiro caso identificado de um usuário de heroína que ficou dependente de heroína em São Paulo, que não fazia parte da comunidade oriental, nunca havia saido do país e buscou ajuda profissional.
Caso clínico:
O paciente de 30 anos, branco masculino, natural e procedente de São Paulo, católico joalheiro, cursou até o segundo ano do curso de enfermagem.
Atividade atual: Tráfico de drogas Atividades anteriores:
Garimpeiro, piloto de teste de motocicletas micro empresário.
Primeiras Drogas:11/12 anos(1977/78) Tabaco, álcool maconha, Inicialmente aos finais de semana; em 1 mês uso diário acompanhado de um ou dois amigos, antes e depois das aulas; 3 a 4 cigarros de maconha/dia; cerveja “até o final do dinheiro”. Evoluindo para: SEGUNDA DROGA: 14/15 anos (1980/81) Cocaína aspirada. Uso diário 1g a 2g, sempre antes do trabalho, ao sair e antes da escola mantinha o uso da maconha. Recursos do próprio trabalho (balconista de loja de sapatos ) . TERCEIRA DROGA: 15/16 anos (1981/82) Optalidon (propifenazona) Mantinha o uso das demais drogas, esta usava semanalmente.
Aos 27 anos de idade (1993), passou a fazer uso de heroína injetável, por não mais sentir os efeitos da forma inalada. Por 6 meses, conseguiu usar somente de 1 a 3 vezes por semana, e ao final de um ano, de 4 a 5 vezes por semana. Aos 28 anos passa a fazer uso diário, 5 a 6 vezes ou mais usando atualmente cerca 1g dia. Para não compartilhar seringas, antes mesmo de usar pela primeira vez, mandou confeccionar uma seringa semelhantes as usadas por dentista, inclusive com “cartuchos” Preparava os “cartuchos” com antecedência para uso próprio e seringas para 18 a 20 pessoas . Usava gotas de casca de limão com ácido para cozinhar e dissolver a heroína em água destilada. Fazia uso da droga em casa de amigos, ou no metrô escondido dos transeuntes.
Há três anos passou a integrar o “tráfico”.
Discussão
O encontro de um paciente que relate o uso de uma droga não facilmente disponível no mercado pode ser o começo de um novo padrão de consumo de drogas que se instalará numa comunidade. Os estudos epidemiológicos mostram que esses casos sentinelas possam ser importantes na detecção de epidemias. Devido a importância de uma nova epidemia de uma nova droga no Brasil este caso pode servir como um alerta. Existe obviamente a limitação inerente a informação de um único caso que possa estar sujeito a uma série de meias verdades, a excepcionalidade da situação vivida pelo usuário, fantasias e mentira plena. No entanto o caso relatado manteve a versão dos fatos consistente ao longo de toda a internação e a maior parte das informações foi confirmada pelos familiares. Além disso, apesar dos sintomas de abstinência dos opiáceos não serem absolutamente patognomônicos, a sequência e o relato dos sintomas foram convincentes de abstinência aos opiáceos.
Resumo
Nos últimos vinte anos existiu uma tendência do consumo de drogas ilícitas mudar constantemente no Brasil. Devemos nos perguntar qual seria a próxima mudança que deverá ocorrer entre nós. Como existe uma tendência já notada há alguns anos, de internacionalização uso da heroina, e além disso, com alguns países andinos estão plantando ópio, uma das possibilidades é que a heroina seja a próxima droga de abuso que surgirá no Brasil. Descrevemos um caso clínico que buscou ajuda e que consumiu heroina até tornar-se dependente. As possíveis implicações deste caso são discutidas.
Unitermos: heroina nova droga, epidemia Brasil, política de drogas.
Ronaldo Laranjeira*, Lilian Ratto*, John Dunn
* UNIAD (Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas), Escola Paulista de Medicina,
Universidade Federal de São Paulo (EPM-UNIFESP)
** Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
Referências
1- Laranjeira. R. “Bases para uma politica de tratamento dos problemas relacionados ao alcool
e outras drogas no Estado de Sao Paulo” J. Bras. Psiquiatria, 45 (4), 191-199, 1996.
2- Dunn, J., Laranjeira, R. “The epidemic that was allowed to happen”. Addiction , 91(8),
1089-1099, 1996.
3- Ferri, C. e colaboradores “Aumento da procura de tratamento por usuarios de crack em dois
ambulatorios na cidade de Sao Paulo nos anos de 1990 a 1993”. Revista da AMB (no prelo)
4- Dunn, J. et al “Crack Cocaine: An increase in use among patients attending clinics in Sao
Paulo: 1990-1993” Substance Use & Misuse, 31(4), 519-527, 1996.
5- Laranjeira, R. e colaboradores “Extase (3,4 metilenodioximetaanfetamina, MDMA): Uma
droga droga velha e um problema novo ?” Revista da ABP-APAL .18 (3): 77-81, 1996
http://www.uniad.org.br/images/stories/publicacoes/science/Heroina