fonte: O Globo

Em festas de classe média alta na Zona sul carioca, utilizando aplicativos de mensagens e site de vendas, uma quadrilha com integrantes do Rio e de São Paulo comercializa uma droga sintética conhecida como GHB (gama-hidroxibutirato). Líquido, inodoro e incolor, o entorpecente tem forte efeito, mesmo se consumido em pequena quantidade. Por isso, além de ser adotado de forma “recreativa”, consensual, ganhou o apelido de “droga do estupro”, ao ser comumente usado por autores de crimes sexuais para deixar as vítimas desacordadas. Anteontem, policiais da 15ª DP (Gávea), com apoio da Polícia Civil de São Paulo, prenderam em flagrante três membros da quadrilha pelo crime de tráfico de drogas e associação para o tráfico.

O GHB líquido é transparente e não tem cheiro. Acondicionado pelos traficantes em pequenos frascos com conta-gotas, chegam discreta e facilmente às festas, onde são vendidos e usados. Os usuários consomem a droga pingando-a diretamente na boca ou em bebidas. Compreende-se, portanto, como o entorpecente pode ser facilmente usado para dopar vítimas de crimes sexuais ou golpes.

Nas apreensões realizadas nos endereços dos acusados de integrar a quadrilha, os policiais encontraram GBL (gama-butirolactona) e butanodiol, dois compostos orgânicos que, segundo as investigações, são matéria-prima para a produção de GHB. Além disso, tanto o GBL quanto o butanodiol se transformam em GHB dentro do organismo, depois de ingeridos.

‘Club drugs’

O GHB já foi utilizado pela indústria no Brasil para a remoção de graxa de máquinas. Atualmente, sua comercialização é proibida. Já o GBL e butanodiol têm venda permitida, mas controlada. Ambos são solventes também usados na indústria. No site do laboratório Sigma-Aldrich, que comercializa o GBL no Brasil, é feito um alerta sobre os perigos do GHB. O texto ressalta que ambas as substâncias são conhecidas como “club drugs”, usadas em festas e casas noturnas e também por autores de crimes de estupro.

Na última quarta-feira, o biomédico Yan Barbosa Damasceno foi preso em casa, em Copacabana, na Zona Sul do Rio. No endereço, os policiais acharam maconha e butanodiol, além de cachimbos e isqueiros. Na clínica estética de Yan, em Ipanema, foi encontrado ácido hialurônico vencido, usado para procedimentos realizados no estabelecimento.

Em uma rede social, Yan tem 13 mil seguidores no seu perfil pessoal e 1,1 mil na conta de sua clínica. Na página, ele dá detalhes sobre os procedimentos realizados.

Segundo informações da Polícia Civil, cada frasco de 30 ml do entorpecente pode custar de R$ 100 a R$ 150. A quadrilha também agia em São Paulo, onde ocorreram as outras duas prisões.

O engenheiro civil Natan Wender Brandão foi preso em casa, na capital paulista, com grande quantidade de drogas sintéticas, como metanfetamina, além de anabolizantes. No local, também havia butanodiol. Na residência do auxiliar de serviços gerais Ednaldo José dos Santos Cosme, a polícia recolheu cocaína, GBL e dinheiro.

Yan e Natan já foram denunciados pelo Ministério Público do Rio pelos crimes de tráfico e associação para o tráfico, mas não tiveram a prisão decretada. A Justiça, no entanto, expediu sete mandados de busca e apreensão, que foram cumpridos pela polícia anteontem. Por causa do material encontrado com os acusados, eles foram presos em flagrante. Além do tráfico, Yan foi autuado por crime contra a saúde pública.

Ontem, a Justiça de São Paulo converteu a prisão em flagrante de Natan e Ednaldo em preventiva. No Rio, a audiência de custódia de Yan será realizada hoje.

— É uma quadrilha de tráfico diferente das que a polícia está acostumada a investigar. São criminosos de classe média e vendem a droga para um público selecionado, com poder aquisitivo maior. Diferentemente das drogas comumente comercializadas nas bocas de fumo das favelas, (o GHB) não é uma droga fácil de se achar, não é encontrada nas comunidades. Faço um alerta para que as pessoas não consumam essa droga porque ela é extremamente viciante e perigosa, pode levar à morte — explica a delegada titular da 15ª DP, Bianca Lima.

GHB líquido é transparente e não tem cheiro. Saiba mais sobre a 'droga do estupro' — Foto: Editoria de Arte

O psiquiatra Jorge Jaber diz que o GHB já existe há tempos no Brasil, mas não é uma droga comum. Segundo ele, a substância é usada em nichos, em ambientes com pessoas de maior poder aquisitivo. Ainda de acordo com o médico, o GHB atua no sistema nervoso central. Em um primeiro momento, com o consumo de pequenas doses, a droga diminui a inibição do usuário, assim como ocorre com quem consome álcool. Segundo o psiquiatra, a substância também é usada para a obtenção de prazer sexual mais intenso.

Riscos variados

Como é diluída em água, a concentração da droga pode variar, dependendo do fornecedor. O perigo aumenta quando há ingestão de grandes doses, que passam, então, a interferir na consciência do usuário. Jaber alerta para diversos riscos no consumo do entorpecente.

— Temos os riscos de curto e longo prazo. No curto prazo, o principal são os acidentes de trânsito, a pessoa perde a capacidade psicomotora. A droga também pode causar náuseas e vômito. É perigoso porque a pessoa pode aspirar o vômito, obstruir as vias respiratórias, o que pode levá-la à morte por parada respiratória ou ao coma. Isso é muito comum ocorrer com adolescentes que fazem consumo excessivo de álcool, por exemplo — diz o especialista.

Jaber alerta, ainda, para os riscos do consumo crônico:

— O GHB leva com rapidez à dependência porque é uma droga fortemente viciante. O usuário vai tendo que tomar doses cada vez maiores porque vai ganhando resistência à substância química. A longo prazo, é uma droga que leva a transtornos gastrointestinais e pode levar até ao comprometimento de funções cardíacas.

O texto no site do laboratório Sigma-Aldrich, que possui autorização para comercializar GBL, ressalta, ainda, que o uso excessivo da substância e de GHB causa convulsão, alucinações, hipotermia e parada respiratória. Nos Estados Unidos, a venda desses compostos é proibida.

Líquida, sem cheiro e transparente: como a ‘droga do estupro’ é usada em festas de classe média alta no Rio